quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Formação democratizante em saúde e política na universidade pública!

MESA: FORMAÇÃO DEMOCRATIZANTE EM SAÚDE 
E POLÍTICA NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
(Texto apresentado no seminário "Educação e Resistência")

Geise do Socorro Lima Gomes
Psicóloga do NASF - Castanhal
Doutoranda em Educação / UFPA

Nós deslizamos à vontade
Na tarde que é dourada,
Bracinhos remam de maneira
Mais que desajeitada
Enquanto que em vão mãozinhas fingem
Guiar nossa jornada. 
(Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas)

Gostaria de iniciar essa conversa relembrando da personagem “Alice” do conto “Alice no País das Maravilhas” – vocês conhecem bem a história, é bastante popular, por isso, não vou recontá-la aqui. Pois bem, a personagem em questão é uma garotinha sapeca que por conta da sua curiosidade, entra em um buraco onde inicia uma queda que parece não ter fim. Quando finalmente o buraco cessa, coisas incríveis acontecem com ela: um novo mundo se descortina e é reinventado a partir de seu posicionamento neste. Ela questiona-se, questiona a realidade negando e contradizendo regras e a ordem das coisas, inquieta-se, intriga-se e experimenta.

É fácil gostar dessa inquietante Alice. E, portanto, não há nada de original nas minhas palavras, porque a Alice inspira a muitos: é referência tanto para a literatura, para as artes, para a filosofia, para as ciências: desde a matemática a Milton Santos! Enfim, também me encantei por essa garotinha desde a minha infância, que ao nascer a minha filha, adivinhem o nome que dei à ela?!

A minha Alice sapeca, hoje com três anos também é fonte de inspiração. Com ela vivo diariamente aventuras incríveis. Essas sim, originais!! Fruto do nosso encontro subjetivo, que se FORMA todos os dias e que opera em mim (DE)FORMAÇÕES constantes, a cada pergunta nova sobre o mundo e a cada resposta sua à FORMA como o entende, o inventa.

A outra Alice sapeca, também chama a atenção em outro aspecto: o mundo novo o qual vai entrar em contato não inicia ali no buraco! Foi preciso uma atitude dessa garotinha, a qual chamamos curiosidade que a impulsiona a seguir no seu devir inquietante, crítico, questionador, a procurar algo dentro do buraco. Atitude corajosa também! De ir ao encontro do desconhecido, e mesmo assim, chegando lá, não parar de questionar!

Pois bem! Com a ajuda dessas “Alice´s” fui convocada a operar no meu pensamento uma posição em relação à temática proposta para esta mesa... que prefiro que funcione como a mesa de chá do nosso conto, também questionando e produzindo curtos-circuitos sobre a formação que recebemos e que colocamos em funcionamento nas universidades, em especial nas universidades públicas.

Desse modo, os currículos propostos para os cursos das nossas nas universidades tem sido elaborados para formar que indivíduos? O quê esperamos desses profissionais? Onde essa formação permitirá que esse profissional atuem? E nesse local de atuação, esses sujeitos formados por essas universidades públicas conseguirão imprimir alguma ruptura, alguma cisão, algum tensionamento?

Essas são algumas das poucas perguntas que podemos endereçar a essa temática da formação ofertada nas universidades públicas, mas que sempre tem ganhado destaque entre pesquisadores, em diferentes épocas, tais como: Moreira (1999); Lisboa e Barbosa, (2009); Yamoto e Costa (2010); Ferreira Neto (2010); Brasileiro e Souza (2010).

É o nosso gato de Cheshire “pentelhando” o tempo todo com seu sorriso de uma ponta a outra da orelha, mas que nem sempre está-nos “sorrindo amigavelmente”, sabemos todos que um sorriso pode ser fatalmente irônico e nesse largo sorriso, portanto, sempre se esboça uma questão!

Vamos ver assim, que desde a década de 70/80 quando começou a se interrogar na Educação e nas Ciências Sociais a formação dada pelas universidades, fortes críticas são lançadas a estas, por realizarem na maioria dos cursos, uma formação tecnicista, apolítica, sem crítica e sem envolvimento, portanto, com as questões sociais que compõem as realidades brasileiras. Muitas dessas críticas foram encabeçadas pelos movimentos sociais preocupados com uma formação que pudesse possibilitar transformações sociais nessa realidade e problematizar os desafios que dai advém (BRASILEIRO; SOUZA, 2010). 

Com Ferreira Neto (2010) dizemos que o pensamento crítico, não produz lugares seguros, contudo, nos “propõe a permanente retomada da avaliação das instituições, sua contínua problematização”. Por quê? Porque essa formação produz impactos nos locais de atuação desses profissionais e nos serviços e atendimentos oferecidos à população. Impactos graves e sérios.

Apesar de parecer uma questão antiga, ainda nos deparamos com situações de total “desconexão” da atuação desse profissional (ou da formação recebida e sua atuação), principalmente nos serviços públicos, por meio da implantação de campos de trabalhos oriundos de políticas sociais. Vou me referir, mais especificamente à psicologia, que é meu campo de formação e atuação e tema de debate dessa conversa. Um exemplo que podemos recorrer é ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas poderíamos também citar o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Dois campos que vem incorporando os profissionais de psicologia, nos últimos anos, mas vamos nos deter ao SUS.

Desde a implantação do SUS no Brasil, em 1988, o quadro de psicólogos nesse campo de trabalho vem se alterando. Assim, na saúde, tínhamos uma reduzida contratação de psicólogos nesta área até os anos 80, e depois o SUS se torna o maior contratante de psicólogos do Brasil: podemos citar a criação dos Centros de Atenção Psicossocial, os Núcleos de Atenção Psicossocial; as residências terapêuticas, os Programas de saúde ligados à atenção primária de saúde como Melhor em Casa, com o foco no atendimento domiciliar, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família como mais uma extensão do apoio matricial, bem como os Consultórios de Rua, etc., todos esses exemplos perspectivam um trabalho na saúde de forma multiprofissional e que na atenção à saúde mental, prima pelo trabalho psicossocial. Vemos aí, tentativas de democratizar o acesso à saúde, pela população, abordando esse sujeito em seus diferentes aspectos e por meio de diferentes estratégias. Mas, claro, muito há que se fazer, porque são práticas recentes que estão ainda em curso provocando a desconstrução “identitária” do psicólogo brasileiro. 

Então, devemos nos perguntar: essas mudanças ocorridas no campo profissional tem sido acompanhadas pela formação recebida? Alguns de vocês mesmos, estudantes, aqui presentes, podem responder a essa pergunta.

De acordo com Ferreira Neto (2011), nós temos uma dívida enorme com o SUS, não só porque ele abriu espaços para o trabalho, mas porque a forma de trabalhar nesse sistema tem demandado desses psicólogos uma atuação diferente, portanto, necessariamente nos provoca e pede uma formação diferente. Onde pese o pensamento criativo, a discussão política das questões que nos circunscreve, principalmente as questões que impactam diretamente a população que é atendida por esses serviços, a população que é tomada como alvo das políticas públicas de saúde, ou seja, a esmagadora população pobre desse país. E aí, questionar por sua vez, os dispositivos que operam nessas políticas públicas, porque não podemos fechar os olhos para as relações de poder que regulam e controlam essa população, tal como, tem nos advertido Foucault em muitos de seus trabalhos.

Problematizar nossa formação se faz necessário para desafiar os conhecimentos que insistem em permanecer ao longo dos anos e que sustentam as práticas criticadas, embora reconheçamos que importantes mudanças já venham ocorrendo, como as que podemos verificar nas Diretrizes curriculares de 2004 e 2011, que desloca a ênfase atribuída aos conteúdos para uma formação pautada em competências e habilidades (e obviamente, este tipo de formação/direcionamento também é passível de muitas críticas (BERNADES, 2004), mas no consola o Ferreira Neto (2011) que pelo menos mudamos o foco das perguntas!) O que não podemos fazer, é parar de questionar! 

O que Ferreira Neto (20111, p.42) quer dizer com essa interpretação é que temos uma mudança teórica-metodológica no currículo de psicologia que transfere o foco da “transmissão de conteúdos” para a “produção de capacidades de atuação em diferentes contextos”. 

O problema é que, não importa a abertura de novos espaços de atuação se não se muda o tipo de formação que estes estudantes estão recebendo, por que acabam indo para esses espaços com uma postura para atenção individual, biologizante, trabalho profissional também individual e isolado, porque não discutem como trabalhar interdisciplinarmente, multiprofissionalmente, e como expressar outra postura analítica que considere as demandas sociais, políticas e econômicas engendradas em nossas condições concretas historicamente e que transversalizam nossas condições de saúde.

Trabalhar com essa população por outro lado, não é assumir uma postura de piedade e nem de líder ou representante, como seja, nossa postura ao priorizar o pensamento crítico deve contribuir para construir outros modos de operar nos serviços de saúde pública: Assim, nos alerta Ferreira Neto (2011, p,17): “os oprimidos, como a população alvo das politicas públicas, conhecem a sua própria dor e podemos funcionar como agenciadores, intensificadores da voz autônoma e direta daqueles que lutam a sua própria luta, sem nos tornarmos para isso os interpretes do que seria desejável para eles. A emancipação deve implicar a autonomia não tutelada do coletivo”.

Desse modo, precisamos rever tanto teoria quanto práticas que extrapolem a atuação no campo da saúde mental favorecendo o processo de saúde (trabalhar com pessoas que não estão em sofrimento psíquico, mas que vivenciam outras formas de adoecimento), ou seja, compreender a relação entre como esse indivíduo se comporta e sua história de saúde, e como intervir nessa relação que é marcada também por um sistema de saúde e pela sociedade.

Para finalizar, trago um trecho do capítulo “Conselhos de uma Lagarta”, do nosso conto citado:

[A Lagarta e Alice olharam-se por algum tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se à Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?” Não era um começo de conversa encorajador. Alice respondeu muito tímida: “Eu... já nem sei, minha senhora, nesse momento... Bem, eu sei quem eu era, quando acordei essa manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então...”

“O quê você quer dizer com isto?” Perguntou a Lagarta com rispidez. “Explique-se melhor”.

“Acho que eu mesma não posso me explicar melhor, senhora.” Disse Alice, “porque eu não sou eu mesma, compreende?”

“Não, não compreendo” respondeu a Lagarta.

“Temo não poder explicar melhor” replicou Alice educadamente. “porque eu mesma não posso entender, para começar... ter tantos tamanhos diferentes em um só dia é muito confuso”.

“Não é, não” falou a Lagarta.

“Bem, talvez a senhora ainda não tenha passado por isso” disse Alice, “mas, quando a senhora se transforma numa crisálida – e isso vai acontecer um dia, a senhora deve saber, e depois numa borboleta, eu acho que vai se sentir um pouco estranha não vai?”

“Nem um pouco” respondeu a Lagarta.

“Bem, talvez os seus sentimentos sejam diferentes”, disse Alice, “mas, o que sei é que tudo isso é muito estranho para mim”.]

Sendo assim, caros colegas, faço dessa mesa de chá, um convite para continuarmos a estranhar essa Psicologia. O chá está sendo servido!

Referências:

BRASILEIRO, T. S. A; SOUZA, M. P. R. Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo da formação de psicólogos. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.

FERREIRA NETO, J.L. (2010). Uma genealogia da formação do psicólogo brasileiro. Memorandum, 18. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a18/ferreiraneto01.pdf.  Acessado em: 16/09/2012.

FERREIRA NETO, J.L. Psicologia, Políticas Públicas e o SUS. Editora: Escuta. 2011.

CARROL, LEWIS. Alice no País das Maravilhas. 2.ed. Arara Azul: São Paulo, 2000.

LISBOA, Felipe Stephan; BARBOSA, Altemir José Gonçalves. Formação em Psicologia no Brasil: Um Perfil dos Cursos de Graduação. Revista Psicologia: ciência e profissão, 2009, 29 (4), 718-737.

MOREIRA, A.F.B.(org.) Currículo: Políticas e Práticas. Campinas: Papirus, 1999.

YAMOTO, O. H.; COSTA, A. L. F. (Org.). Escritos sobre a profissão de psicólogos no Brasil. Nata, RN: EDUFRN, 2010.

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