Publicado em: http://www.crprj.org.br/
Entrevista
com Luciana Knijnik (CRP 05/33458), psicóloga e militante de direitos humanos.
1) Como você vê a relação entre Psicologia e direitos humanos?
A Psicologia tem uma tradição de ver seu trabalho como não
intervindo no campo político. Mas todo psicólogo é político, querendo ele ou não, porque a
prática do psicólogo é atravessada por todas as forças econômicas, sociais,
culturais. E, ao mesmo tempo, o psicólogo também está intervindo nesses mesmos
campos que compõem a produção de subjetividades.
Nesse sentido, o campo dos direitos humanos não é um especialismo,
não seria uma especialidade do psicólogo, mas uma maneira de ver o mundo e de
agir, de produzir sua intervenção.
2) Como a questão dos direitos humanos afeta o cotidiano profissional
dos psicólogos?
Ela está presente em todo nosso campo de atuação. Os valores que
estão colocados nas declarações de direitos humanos e em todo o Sistema de Garantias
pautam, inclusive, o nosso código de ética. Ele está embasado nas declarações
de direitos humanos: o respeito, a promoção da liberdade, da dignidade, da
igualdade, da integridade etc. Todos esses são valores e bandeiras de luta do
campo dos direitos humanos, mais isso pode acontecer em qualquer espaço: no
consultório particular, em uma instituição, em um espaço de militância
etc.
3) Como você vê o tratamento dado aos direitos humanos hoje em
nossa sociedade? Que tipos de violações ainda são cometidas?
É preciso ver que há várias concepções sobre o que são direitos
humanos. Os direitos humanos são resultado de um processo histórico, das lutas
dos povos e, dependendo do momento histórico, eles foram usados com uma
intenção ou outra. No período da ditadura militar, a discussão sobre direitos
humanos ganhou força no Brasil, principalmente porque os inimigos eram, em
muitos casos, filhos da classe média. Hoje em dia, os atingidos pelas maiores violações
de direitos humanos são os pobres. Por isso, diz-se muito que direitos humanos
é “coisa para defender bandido”. Enquanto eram os filhos da classe média e
trabalhadores que estavam sendo atingidos, essa discussão tinha uma
legitimidade. Então, parece que hoje em dia ainda temos que colocar em
discussão tanto o conceito de direito quanto o de humano. O que vem se
produzindo é que quem é pobre ou bandido é colocado na categoria de “não
humano”, então não teria direitos - assim como, na época da primeira
Constituição, os escravos não eram considerados humanos, mas propriedade
privada, então estavam fora do tema de garantia de direitos, porque não eram
cidadãos. Hoje, permanece a mesma lógica.
4) Mas, nessa época, isso estava colocado na Lei. Hoje, a
Constituição diz que todos são iguais perante a Lei...
Se formos abrir o jornal cotidianamente, está sendo produzida essa
associação da pobreza e de quem comete algum delito como “não humano”,
colocando-os como monstros, pessoas que não têm propriedade de suas faculdades
mentais. Então, começamos a ter essa sensação, de que essas pessoas estão fora
do sistema de garantias. Aí, está a primeira falácia da Declaração de Direitos
Humanos, que diz que todos nascem livres e iguais. De fato, sabemos que isso
não acontece, as pessoas vivem em situações muito desiguais, então isso já as
coloca em patamares diferentes. Não podemos dizer que elas nascem iguais,
porque elas não nascem com as mesmas condições de acesso nem aos direitos
básicos. Essa é uma das lutas no campo de dos direitos humanos: os direitos
básicos de alimentação, de moradia, de saúde etc., mas direitos humanos não são
só isso; são muito mais, são uma luta pelo direito à potencialidade
que a
vida permite e nem todos têm acesso.
5) Sobre essa questão que você comentou, de que se diz que
direitos humanos são só para bandidos, como esse discurso é produzido? Como a
Psicologia pode contribuir nesse ponto?
A Psicologia vem contribuindo mais para legitimar essa visão, na
medida em que patologiza crimes e delitos e, em muitos casos, não vem
promovendo essa discussão sobre o modo como estamos vivendo e como isso leva a
determinadas condutas. Então, enquanto a Psicologia continuar fazendo
discussões no campo do individualismo, não vamos ganhar força para fazer esse
debate com mais propriedade. Os laudos produzidos pelos psicólogos são, muitas
vezes, um instrumento disso, de legitimar essa patologização da pobreza.
6) Você está lançando o documentário Arquivos da Cidade. Como
essas questões sobre direitos humanos estão presentes nele?
Esse é um trabalho que comecei em 2005, quando iniciei meu
mestrado na UFF, e comecei minha militância no Grupo Tortura Nunca Mais. O tema
da minha pesquisa era a experiência da tortura, então trabalhei com pessoas que
foram torturadas no período da ditadura e pessoas que foram torturadas após o
término oficial da ditadura militar. Já nessa época, comecei a trabalhar com
vídeo – sou psicóloga, não sou da área do cinema, mas utilizei esse recurso
como instrumento de trabalho, então, esse documentário que estou lançando é um trabalho
com entrevistas com pessoas que eram militantes no período da ditadura no Rio Grande
do Sul. Ele é um instrumento para discutir não só a violência de Estado na
ditadura, mas os mecanismos que ainda hoje permanecem. Ele é um dispositivo
para que as pessoas possam falar dessa experiência. Vemos que essa é uma
experiência que fica silenciada. Como não temos no nosso tecido social no
Brasil um ambiente que permita que as pessoas falem dessa experiência, elas
acabam ficando restritas ao âmbito do privado. Então, esse é um instrumento de
intervenção, também do psicólogo. Porque, às vezes, achamos que a Psicologia só
tem determinados campos de atuação, e acho que ainda podemos inventar novas
práticas para o psicólogo. Às vezes, achamos que fazer uma música, um filme ou
uma pintura não tem nada a ver com a Psicologia, mas tudo isso pode ser recurso
para a prática do psicólogo.
7) Você falou sobre pessoas torturadas após o término da ditadura.
De que formas a tortura ainda está presente em nossa sociedade?
A tortura está absolutamente legitimada. Em todas as prisões,
cadeias e espaços que seriam de recuperação de jovens, a tortura é uma prática
que está absolutamente instituída. E fechamos os olhos para isso. Não só
fechamos os olhos como a população, muitas vezes, apoia explicitamente essas
práticas, dizendo que bandido tem mais é que sofrer mesmo, que quem cometeu
algum crime tem que pagar por isso etc. É certo que tem muita gente
sendo torturada em nosso país.