sexta-feira, 28 de junho de 2013

Emir Sader: Governo paga caro por não ter democratizado a mídia

Publicado em: http://www.viomundo.com.br/



por Conceição Lemes
O primeiro ato de protesto contra o aumento da tarifa de ônibus, metrô e trem na cidade de São Paulo aconteceu em 6 de junho. Convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL), reuniu 5 mil pessoas.
O segundo ato, no dia seguinte, juntou, também, 5 mil.  O terceiro, 12 mil.  O quarto, em 13 de junho, quando houve violenta repressão policial, 20 mil.
Ao quinto ato compareceram mais de 200 mil.  Ao sexto, mais de 50 mil. No sétimo, em 20 de junho, para comemorar a redução da tarifa, 100 mil. No mesmo dia, ocorreram manifestações em mais de 120 cidades brasileiras, com grande variedade de pautas. Dirigidas inicialmente a seus prefeitos e governadores, passaram a ter como alvo principalmente o governo federal.
“O crescimento muito forte do movimento seria impossível sem a ação monopolística dos meios de comunicação”, alerta o sociólogo Emir Sader. “O governo está pagando caro por não ter democratizado os meios de comunicação. É um bumerangue que está voltando para as mãos do próprio governo.”
Emir Sader é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É também secretário-executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais. Nesta entrevista ao Viomundo, ele analisa as mobilizações que ocorreram nas duas últimas semanas, a atitude do prefeito Fernando Haddad (PT) e  o que a esquerda deve fazer agora.

Viomundo – Por que as manifestações cresceram tanto?  Qual a sua avaliação do movimento?
Emir Sader — As mobilizações tiveram potencial de crescimento muito forte, porque pegaram duas fragilidades especiais do governo. A falta de políticas destinadas aos jovens, que dialoguem com eles: cultura, aborto, descriminalização de drogas, internet.  E a ausência de iniciativas para democratizar os meios de comunicação.
Os jovens se mobilizaram por uma proposta justa contra o aumento de tarifa de transporte público. Porém, ela acabou catalisando quantidade enorme de outras demandas de diferentes tipos. O movimento passou a ser, então, uma disputa entre a extrema direita e extrema esquerda.
Obtida a primeira vitória, no dia 19, o movimento se esvaziou, porque o objetivo imediato foi alcançado. Porém, a partir da última quinta-feira 20, mudou o caráter das coisas. O potencial totalitário, que estava em segundo plano devido à reivindicação inicial, aflorou.
Tanto que a manifestação da quinta-feira passada não teve caráter de festividade, embora fosse a proposta do Passe Livre. Foi um ato sem objetivo imediato. E, aí, pode exteriorizar-se mais claramente a agressão contra a participação do PT, da CUT, já que o objetivo central tinha desaparecido do horizonte. Também as cenas de vandalismo se multiplicaram, a ponto de a direção do Movimento Passe Livre dizer que por ora não vai convocar outra manifestação.
Viomundo – Por que mudou o caráter?
Emir Sader — Essas mobilizações sem objetivo imediato, ingenuamente ou não, se prestam a ser  laranjas dos vândalos, que,  por sua vez desatam um processo repressivo como resposta. Dão a impressão de que estão buscando um cadáver, algum heroísmo, para poder multiplicar o movimento. Acho que, aí, já prevalece mais a ideia da provocação.
A própria imprensa, que até a última quinta-feira estava falando euforicamente “de um Brasil que está na ruas”, começou a passar a ideia de que o País estava sem controle. Foi como que apelando à repressão, querendo que o governo se aventurasse a uma repressão maior que o desgastaria, desgastaria a sua autoridade e geraria mais uso da força.
Viomundo – Esgotou-se uma etapa?
Emir Sader – Penso que sim, porque terminou a natureza reivindicatória, que foi vitoriosa e ficou sem objetivos imediatos, se prestando muito a desatar uma onda de violência, que,  aqui no Rio de Janeiro,  está sendo explorada. É preciso ver o que vem em seguida.
Viomundo – Nas manifestações de quinta-feira, não apenas bandeiras de partidos políticos, mas também do MST e do movimento negro foram queimadas, destruídas. O que acha disso?
Emir Sader — A mídia conseguiu inculcar a ideia da raiva dos partidos políticos, particularmente do PT. A gente pode perguntar: Por que a raiva do PT e não do PMDB e dos tucanos?
Aí, tem um instrumento de classe. É a bronca com os partidos, os governos, a política e o PT, que, claro, é  o que encarna mais diretamente isso.
Mas tem outro elemento que os opositores do governo estão tentando tornar dominante: desqualificar a ideia de que o Brasil melhorou.
Até a oposição aceitava isso e começava a discutir, que precisava fazer mais. Eles partiam desse pressuposto. Agora, eles estão com uma ideia de tábula rasa. É contra tudo o que está aí, personificado no PT, e essa ideia de que o Brasil acordou.  Esse é o selo da direita, que agora deu mais um passo adiante. Não é a ideia de que precisa fazer mais, fazer melhor. É a desqualificação da política, do governo, do PT e tudo mais. Essa propaganda tem um substrato que desemboca na violência, porque é a representante disso que está aí.
Viomundo –Em que medida a falta de iniciativas do governo para democratizar a mídia e  a não regulamentação dos meios de comunicação contribuiu para isso?
Emir Sader –  Esse movimento seria impossível sem a ação monopolística dos meios de comunicação.  No começo, eles até desqualificavam o movimento, depois perceberam que poderia ser um elemento de desgaste do governo federal e passaram a apoiar desproporcionalmente, a multiplicar sua importância.
Acho que o governo está pagando um preço caro por não ter democratizado os meios de comunicação. É um bumerangue que está voltando para as mãos do próprio governo.
Até agora, aparentemente, iria surfar nas eleições de 2014, e não queria briga nenhuma. Mas a Dilma já começou a perceber que o seu modelo econômico e social está sendo afetado pela desestabilização promovida pela mídia e a sua popularidade também.
Claro que houve, ainda, a intervenção desastrosa do prefeito de São Paulo, que poderia ter cortado isso logo no começo. Ele tem uma responsabilidade grave nessa história toda.
Viomundo – O Fernando Haddad foi titubeante?
Emir Sader — Eu nem diria titubeante. Diria que estava com uma atitude equivocada. Primeiro, ele condenou as ações de vandalismo, fazendo parecer que a violência era isso, não era a violência também da PM. Segundo, ele fechou as portas para a negociação, dizendo que não receberia representantes do movimento enquanto houvesse violência.
Disse também que não voltaria atrás no aumento. Ou seja, ele tinha mesma postura do Alckmin: não negociar e denunciar a violência dos manifestantes.
Viomundo — Essa postura do prefeito contribuiu para que o movimento crescesse?
Emir Sader — A violência sempre multiplica os movimentos. Além isso, ele fechou as portas para a negociação, ajudando ainda mais a disseminar o movimento. Ele tem responsabilidade de ter facilitado o alastramento das mobilizações.
Viomundo – O governo Dilma se afastou dos movimentos sociais. Se isso não tivesse ocorrido, a evolução das manifestações  não teria sido outra?
Emir Sader – Mais do que o governo Lula?
Viomundo — Acho que sim. Os próprios movimentos sociais queixam-se disso.
Emir Sader — Não dá para ficar culpando só o governo. Ele faz as suas políticas sociais, elas são mais ou menos populares. Agora, os movimentos sociais, que deveriam mobilizar os beneficiários dessas políticas, perderam a capacidade de mobilização.
Na quinta-feira, o MST e a CUT disseram que iriam à manifestação. Em São Paulo e  no Rio de Janeiro, comparecimento deles foi muito pequeno, mostrando flagrante incapacidade de mobilização.
Eu não acho que substancialmente o governo da Dilma se afastou mais do que o governo Lula. Uma coisa é o diálogo. O Lula chamava mais, conversava mais com os movimentos sociais… Você não tem quem realmente defenda os trabalhadores no seio do governo.
Viomundo – Nos últimos dias, muitos leitores postaram comentários preocupados com a possibilidade de um golpe no Brasil. O que acha disso?
Emir Sader — Todos os comentários que eu vejo sobre o assunto são fantasmas da esquerda. Pânico da esquerda. Não se tem notícia vinda das Forças Armadas nesse sentido. Quem sabe o que é golpe conhece isto. Não há clima para golpe.
Tudo bem, não se pode baixar a guarda. Mas também não se deve alimentar o fantasma do golpe. O objetivo da direita é desgastar a Dilma para tentar chegar ao segundo turno em 2014. O passo seguinte são as pesquisas eleitorais  para mostrar o desgaste da Dilma. Esse é  o caminho. Aí, vale tudo.
Viomundo – Nessa situação, o que a esquerda deve fazer?
Emir Sader – Primeiro, ir para as ruas com suas próprias manifestações para disputar o espaço político.
Segundo, disputar a interpretação, a narração do que está acontecendo hoje no Brasil. Nós sabemos que, quando há um avanço histórico da esquerda, há uma contra-revolução ou uma reação correspondente da direita.
É o que está acontecendo hoje. Mídia e oposição manipulam, usam os jovens como massa de manobra, disseminando a ideia de que  o Brasil é uma merda, de que tudo o que é feito aqui é uma merda.
Nós temos que tentar impedir que se consolide essa visão muito retrógrada do País. Nós temos que favorecer a nossa interpretação do que está acontecendo e mostrar o que, de fato, já foi feito.
Terceiro, disputar nacionalmente com oposição a nossa agenda. Isso significa batalhar pela democratização dos meios de comunicação e  financiamento público das campanhas eleitorais, entre outras coisas.
Esses são os três desafios que a esquerda tem de enfrentar.

Muniz Sodré: A imprensa reflete o racismo no Brasil por inteiro

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Muniz Sodré: “Quais foram os lugares de resistência às ações afirmativas? A imprensa. Aqui no Rio, O Globo. E com dirigentes, Ali Kamel”. Foto: Laboratório de Estudos da Comunicação Comunitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) do site do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro
Muniz Sodré é negro, baiano, fala russo, alemão, iorubá e francês, é faixa-preta em caratê e jiu-jítsu. Mas não foi por isso que um dia, quando trabalhava na revista Manchete, agrediu fisicamente Adolpho Bloch – coisa que muito jornalista já teve vontade de fazer. Sodré completou 70 anos em 2012, no dia 12 de janeiro, e entre os vários eventos que lhe prestam homenagem, um leva o nome de um grande amigo.
O Prêmio de Jornalismo Abdias Nascimento – organizado pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio), ligada ao Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio – vai homenagear este professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ. Na noite de segunda-feira (12/11), em meio à entrega dos prêmios aos jornalistas vencedores, Sodré será chamado ao palco. Ele vai ouvir algumas palavras, por sua militância contra a discriminação racial e contribuição à diversidade cultural, e falar algumas outras.
Antes disso, o site do Sindicato dos Jornalistas foi até sua casa, no bairro carioca do Cosme Velho, para uma entrevista sobre imprensa, jornalismo de hoje, de ontem, racismo e preconceito. Confira a seguir.
Ao longo de 2012 o senhor recebeu várias homenagens pelos seus 70 anos. Como o senhor encara isso? A idade começou a chegar de fato?
Ela chega. Com 70 anos você começa a perceber que o corpo não está mais o mesmo. Eu faço esporte violento (capoeira, caratê, jiu-jítsu), mas o corpo não reage da mesma maneira. Você sente que o esqueleto não aguenta mais. No caratê, que é um esporte de impacto, com o passar do tempo as pancadas vão ficando muito fortes. E o corpo não é mais o mesmo. Faço ioga também. Outro dia, pela manhã, estava com o corpo todo doído.
Sua ligação com jornalismo vem de onde?
Eu sempre gostei de ler e escrever. Sempre fui meio CDF. Falo várias línguas. Fui tradutor, falo inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, russo, árabe, iorubá (de origem africana, língua dos terreiros de candomblé), fui professor de latim. Era muito conhecido na Bahia por isso. Fui tradutor oficial da Prefeitura de Salvador. Quando você vai envelhecendo, o gosto por falar vai desaparecendo. Não falo bem como eu falava antes. Mas ainda dou conferência nestas línguas. O jornalismo vem desta coisa de escrever. Sempre fui profissional de jornalismo.
Mas deixei a profissão em 1974, não estava mais interessado. Tinha um cargo na Bloch. Fui chefe de reportagem e redator da Manchete. Comandei a TVE em 1979 e 80. Meu último cargo público foi na Biblioteca Nacional, de 2005 a 2010. Nunca mais na vida quero cargo público.
Causa muito problema?
É muito arriscado. Você dirigir orçamento público hoje é tão perigoso quanto entrar à noite da favela do Rato Molhado (Zona Norte do Rio), você não sai vivo. Pode entrar armado, vai sair sem arma e sem cabeça. Dirigir orçamento público é a mesma coisa. Existem duas instituições de controle contábil no País que acho que são as melhores do mundo: a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Todo mudo acha que no Brasil tem muito roubo. Tem roubo mas se sabe. É impossível roubar no serviço público sem que (os órgãos) saibam. Cada conta, cada despesa é controlada integralmente pela CGU, e no final do ano, pelo TCU.
Uma vírgula fora do lugar e…
Está frito. Mas falam que é tanto roubo… Mas se sabe, só escapa quem tem força política. É um tipo de trabalho que é muito bom para ladrão. Se você é honesto, você pode se acusado por uma besteira e vai para o Diário Oficial da mesma forma que o ladrão. Enquanto que o ladrão está acostumado a isso e não vai para a cadeia. A primeira vez que estou vendo ir para a cadeia alguém deste tipo é nessa história do mensalão. Quem costuma ir para cadeia mesmo é preto e pobre, pp.
E qual a sua avaliação sobre a cobertura dos jornais atualmente, a exemplo da forma como foi noticiado o julgamento do mensalão?
Hoje em dia o leitor se interessa muito pouco por assuntos sérios. O entretenimento e a diversão são o grande módulo do jornalismo. Isso é uma lástima. Um exemplo: o Segundo Caderno de O Globo. Os assuntos são música popular, TV, teatro, shows. Aí você tem colunistas que, se você prestar a atenção, todos estão ligados ao show business de um modo ou de outro – até quando são muito bons. Francisco Bosco, filho do João Bosco, é muito bom articulista. Mas o pai é músico, ele faz letra, é poeta… José Miguel Wisnik (também colunista em O Globo) é músico, professor. Caetano Veloso é Caetano. Hermano Vianna, irmão de Herbert Vianna. O show business, o entretenimento atravessam por inteiro o jornalismo. Tudo é diversão. E acho que isso contaminou o assunto mensalão. Para atrair leitores para este assunto, que é técnico, precisaram fazer uma novela do Supremo Tribunal Federal, o bem e o mal. O Lewandowski (Ricardo, ministro do STF, votou pela absolvição de réus do mensalão) foi votar (nas últimas eleições) e recebeu vaia porque ficou como vilão da novela. Já o Joaquim Barbosa (relator do caso) ficou de herói. Acompanhei o mensalão pelo Globo, pelos jornais, como uma novelização do julgamento.
A imprensa pode ter sido mais rigorosa por se tratar de um julgamento que envolve políticos do PT?
Tem uma atração a mais. Se fosse o PSDB, e não tivesse no poder o PSDB, não teria a mesma atração. Sabe-se que houve mensalão do PSDB, o caso do FHC nas Ilhas Cayman, mas nunca tocaram nisso. É o mesmo tipo de escândalo se alguém vê e denuncia. O problema é que alguém sempre apita, quando apita é preciso saber se a imprensa está disposta a pegar isso.
Pelo que o senhor observa nos alunos de Jornalismo, qual é a expectativa deles com o futuro profissional, com o que vão encontrar?
O jornalismo mudou. Ninguém que sai de lá (ECO) está desempregado. Estão nas redações? Não. O maior mercado é a assessoria de comunicação, depois a Internet. A comunicação hoje é um território onde a sociedade se desenvolve. As pessoas no fundo criam seus próprios empregos hoje. Claro, tem muitos que vão para jornal, para rádio, TV. As redações estão cheias de ex-alunos da ECO, da Fluminense, da PUC. Mas é um emprego de uma rotatividade muito grande, você passa pouco tempo nele. A profissão de deslocou da questão da entidade do jornalista.
O Prêmio Abdias Nascimento destaca trabalhos jornalísticos que estimulem a diversidade, que combatam a discriminação. No tipo de jornalismo feito hoje no Brasil há muito racismo?
A esquerda não gosta de ouvir isso, mas o Brasil é um país muito racista. O racismo é um mal estar civilizatório. Conheço poucos lugares no Brasil onde não há racismo, as grandes casas de candomblé por exemplo. As instituições são racistas. Onde dou aula (Escola de Comunicação da UFRJ) você vai ver um único professor negro, eu. E mesmo assim, há quem ache que eu não sou negro, que sou negro pálido. Tinha um outro (professor negro) que foi transferido. Procure entre os alunos para ver se encontra algum que seja negro. É difícil. Se encontrar aluno negro, é de convênio, angolano, cabo-verdiano. Departamento de Física, de Matemática… vê se encontra negro! O mecanismo é excludente. Quando começaram as ações afirmativas, que foram as melhores coisas do governo Lula, aconteceu um novo tipo de inclusão social. Acho que isso foi uma das coisas mais importantes que ocorreram no Brasil neste século.
Por quê?
Bem, este negro que está na universidade pode não melhorar de vida economicamente. Mas vai melhorar em autoestima e na posição dele na cidadania. Isso você já nota, sente a repercussão disso até na televisão. Antes tinha em novela um ou outro negro, e agora tem novelas inteiramente de negros.
É um reflexo das ações afirmativas?
É um reflexo já. O problema do racismo é deixar se aproximar. Se uma filha entrar em casa de braço dado com um negão, o pai não vai gostar. Não é uma questão de ser racista, mas é o lugar que o negro ocupa na sociedade brasileira. “Minha filha vai casar com este cara, ele não vai ter emprego.” Você não pode satanizar o comportamento discriminatório sem mais nem menos. Tem que lutar contra ele, criar os mecanismos de aproximação. Portanto, sou a favor das cotas porque elas colorizam a paisagem colonizada. Recebo visita aqui de caras de 35 anos, negros, que trabalham com educação na periferia de São Paulo. Você olha para ele e pensa que ele trabalha com música. Nada! Tem mestrado nisso, doutorado naquilo…
Mas então a imprensa acaba refletindo este país racista?
Reflete por inteiro. Os jornais, para usar expressão de Gramsci (Antonio, cientista político italiano), são intelectuais coletivos das classes dirigentes. Refletem este desejo de que as coisas fiquem como estão, cada macaco no seu galho. Quais foram os lugares de resistência às ações afirmativas? A imprensa. Aqui no Rio, O Globo. E com dirigentes, Ali Kamel. Nas universidades você encontra em alguns cursos resistência (às cotas). Mas no próprio O Globo tem gente que defende as ações afirmativas, o Elio Gaspari, por exemplo, Miriam Leitão, Ancelmo Gois. Mas as notícias, as pautas, tudo isso aí tem viés. O negro não está representado na pauta.
Como era sua relação com o jornalista Abdias Nascimento?
Ele foi meu amigo. Meses antes de morrer (em maio de 2011) me chamou para almoçar na casa dele. Almoçamos ele, Elisa (esposa de Abdias) e eu. Foi uma tarde ótima. O Abdias Nascimento, em plena época dura do racismo, criou o Teatro Experimental do Negro (na década de 1940). Ninguém fala muito disso, falam de Nelson Rodrigues… Como professor, como homem público, senador, ele atuou dentro da paisagem racista brasileira.
Qual a sua opinião com relação à exigência do diploma de Jornalismo para exercer a profissão?
Quando o Supremo acabou com a exigência do diploma (em 2009), o argumento era imbecil, de uma ignorância, desconhecedor do que é jornalismo. Estes juízes são menos doutos do que você pode pensar. Eles não sabem o que é imprensa. O argumento de Gilmar Mendes, dizendo que jornalista é como um chefe de cozinha… não sei como ele fez esta ligação. Aliás, um chefe de cozinha ganha muito melhor que um jornalista. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. E, na França, para ser chefe de cozinha, tem que ter diploma. Já fui inteiramente a favor (da exigência do diploma), hoje eu hesito. Mas sou a favor ainda porque você não precisa de diploma para ser administrador de empresas, economista, advogado. Para quê? Só por uma garantia corporativa. Sou formado em Direito, a maior parte dos advogados é de analfabetos completos. Você precisa de diploma em profissões onde há risco de vida envolvido na profissão, como engenharia, medicina… No entanto, se é mantida a exigência do diploma para estes, porque não para o jornalista, dada a importância que a informação tem hoje na vida social? Ninguém aprende na faculdade aquilo o que está destinado na profissão. Ninguém se torna médico na faculdade de Medicina. Você se torna médico na residência, no hospital. Na faculdade, você aprende a aprender. Acho que o diploma dá uma garantia à profissão de jornalismo e permite uma luta mais equânime com os patrões por salários.
Liberdade de expressão e liberdade de imprensa são expressões muito utilizadas pelos empresários de comunicação, que têm seu expoente maior na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Estes dois termos estão desvirtuados hoje?
A liberdade de imprensa foi abarcada pela mídia corporativa. É a liberdade dos donos de imprensa, de não permitir ingerência do governo no negócio da imprensa. Enquanto que liberdade de expressão é uma coisa a ser conquistada ainda. O jornalista que é empregado desta mídia corporativa não tem liberdade de expressão lá dentro, quem tem é o dono do jornal. Liberdade de expressão é você poder dizer o que quiser em qualquer que seja o meio de comunicação – mas você não pode fazer isso em televisão, em jornal, em rádio. Onde você pode dizer? Na internet, mas aí ninguém vai te escutar. Você pode fazer um blog, por exemplo. Aí você tem liberdade de expressão em termos – porque podem processá-lo. Mas a Internet é suficientemente caótica e anárquica para dar ao indivíduo a liberdade de expressão. Porém, o problema da liberdade de expressão não é apenas dizer o que você quer. Em Londres, no Hyde Park, tem um caixote onde o sujeito sobe para dizer o que quiser. Sobe e discursa. Sempre tem um para escutar. Então o sujeito esculhamba a rainha, o rei… dez, vinte pessoas escutam, acham aquilo engraçado, é tradição, e saem. Liberdade de expressão, as pessoas podem ir ali falar.
Isso é liberdade de expressão?
Liberdade de expressão hoje é mais que isso. É a possibilidade também de ser escutado, é dizer o que quer num espaço público. E o espaço público é o espaço determinado, formado por mídia, mas formado também por academias, associações, clubes, escolas… Só quem tem liberdade de expressão é quem tem hoje liberdade de imprensa. Portanto, não basta o meio técnico para você falar, tem que constituir sua audiência, o público. Este é o grande problema da Internet hoje. A escuta atualmente é mais difícil do que a fala. As pessoas fazem tanta análise hoje, vão ao psicanalista, em busca de atenção. Pagam para que alguém as escute porque ninguém lhe escuta desta forma. A atenção é a grande mercadoria de hoje. Portanto, o problema não é a livre expressão, é a escuta obrigatória. Existem bilhões de blogs na internet, alguns têm leitores. Você pode escrever a coisa mais importante do mundo, mas ninguém lê.
Para finalizar, como é mesmo aquela história de que o senhor agrediu Adolpho Bloch?
Eu morava em Paris e era freelancer da Manchete. Tinha feito uma matéria com Georges Simenon (escritor belga) e fui entregar o texto. Ele (Adolpho Bloch) estava lá no dia. E, neste mesmo dia, corria a notícia de que os árabes haviam destruído aviões israelenses (durante a Guerra dos Seis Dias em 1967). Mas aconteceu o contrário, os israelenses que destruíram a aviação egípcia em terra. Bloch estava muito nervoso, era judeu. Quando entrei, ele quis colocar o nervoso em cima de alguém, era típico dele – no dia que chegava nervoso demitia um contínuo, um funcionário, era assim na empresa. Ele veio, eu disse que estava trazendo uma matéria, e ele falou: “No Brasil nós já mudamos de estilo.” E foi chegando perto de mim. Eu com o texto na mão. E então ele avançou sobre a matéria. Aí, já viu! Quando eu percebi ele estava no ar, eu segurando ele. E olha que Adolpho era pesado. Mas ele tinha uma grandeza nesta sua maluquice. A briga de desfez, um ano depois eu passava por ele no corredor da Bloch (no Rio) e ele me chamava de mestre em russo. Colocava a mão no meu ombro e perguntava se estavam me tratando bem na empresa. Eu dizia que sim, mas que poderia estar ganhando um pouco melhor. Aí ele já tirava a mão do meu ombro (risos). Esta briga, se fosse com qualquer outra pessoa, eu estaria demitido. Se eu estivesse no lugar dele, mandava me demitir. Se fosse com o Roberto Marinho, seria mandado preso.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Os perigos da “pátria amada”


Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio.

O intuito da pequena reflexão que segue não é desmoralizar os atos ocorridos em diversas cidades brasileiras, que começaram contra o aumento das tarifas de transportes públicos, no início de junho, e, hoje, apresentam “pautas” variadas. É justamente a pulverização dessas motivações que nos preocupam. Quais são os motivos da luta mesmo?
Na página virtual (Facebook) do Quinto Ato, marcado para o dia 17 de Junho e com mais de 240 mil pessoas com presença confirmada (já esperando os ataques bárbaros da Polícia), as enquetes conseguem fazer qualquer queixo que se preze cair. Em uma delas, que perguntava qual bandeira deve-se levantar após a baixa dos preços das passagens (se houver), algumas das propostas colocadas como motivo de mobilização (mesmo que não muito votadas) são: cancelamento da Copa do Mundo 2014 (um tiro no pé, com todo o investimento já feito), Reforma Política (que reforma?), Segurança (mais PM nas ruas?), Diminuição da maioridade penal (sem comentários), Fim do Funk (projeto higienista manda um “Oi!”), a favor do Estatuto do Nascituro (sem comentários, de novo), CCC – Campanha Corruptos na Cadeia (não tinha um nome melhor? Quase um CCC – Comando de Caça aos Comunistas - de 1964), dentre outras propostas que preferimos não imaginar o que aconteceria caso ganhassem força.
Se por um lado, a heterogeneidade de propostas e a falta de uma liderança nos movimentos representa a possibilidade de uma relação horizontal entre os sujeitos; por outro, a falta de direcionamentos aponta para o risco de causas conservadoras se tornarem as principais do movimento agora sem nome. Não consideramos o quadro atual da manifestação como anárquico, classificação feita em algumas análises, mas como preocupante, nesse sentido.
Outro ponto bastante incômodo em relação às pessoas se organizando para o ato (e a fim de formar um movimento – longe de estar unificado), é o (perigoso) nacionalismo proposto por boa parte dos manifestantes, e presente principalmente na ideia de entoarem o Hino Nacional em coro. Em uma enquete, feita também na página de organização do ato da segunda-feira (17), a maioria esmagadora era a favor de que cantassem o Hino em massa. A verdade é que sentimentos ufanistas assustam, sobretudo por sabermos, historicamente, que nunca geraram bons frutos. Estudos apontam que o ideário nacionalista brasileiro, em sua trajetória, poucas vezes chegou às classes populares (por que será?), pertencendo aos militares. Um comentário bastante sensato feito na mesma enquete, colocou que o “hino é um instrumento que forja uma falsa unidade nacional”. Se a mundialização do capital está posta, a necessidade da mundialização da luta é latente. Para isso, nada de bandeiras do Brasil em volta de nossos corpos, nada de “pátria amada, idolatrada”.
É batido, mas Marx já justificara por A + B que “os operários não têm pátria” e, por mais que devamos lutar pelas condições horrendas as quais nos coloca o capitalismo, isso não tem a ver com o “orgulho de ser brasileiro”, mas com o orgulho de sermos humanos.
E aqui nasce uma nova preocupação: até ontem pairava no ar um espectro do oportunismo da “grande” mídia, que, aparentemente, pareceu ter sido desmistificado com as recentes publicações da Globo e seus atores com olhos pintados fazendo uma alusão à jornalista acertada covardemente com uma bala de borracha no olho, depois nos deparamos com um link a ser compartilhado nas redes sociais que trazia dicas de “Moda para protesto, roupa de guerra” - a estilista pop global, Gloria Kalil, já havia soltado no site dela opções de roupas (sic!) para ir ao ato. Agora, qualquer dúvida que ainda tínhamos sobre um possível oportunismo ficou clara ao nos depararmos com - o sempre tão incisivo - Arnaldo Jabor voltando atrás em relação a quando deslegitimizou as primeiras manifestações comparando-as com ações do PCC, vitimizando os policiais e ressaltando a ignorância política dos manifestantes. Ele se redime e depois compara o movimento ascendente com o, exaltado pela própria Globo, Caras Pintadas (o movimento pode ter se originado de uma indignação, mas logo foi absorvido pela maior rede de TV do Brasil... Ah! A mesma emissora que ajudou na eleição do Collor). Daqui a pouco, veremos propagandas de refrigerantes convocando o Brasil pras ruas, presenciado o maior “jogo” já visto... A arte de mercantilizar a revolução.
Pra não dizer que não falamos dos espinhos, ter os povos nas ruas, em massa, não é sempre sinal de mudança popular. Em 1964, os setores conservadores da sociedade tremeram com a “ameaça comunista” (ainda com Jango no poder), que representava, na verdade, uma “ameaça” à propriedade privada e foram às ruas, em meio milhão de pessoas, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Dias depois, instaurada a Ditadura Militar, um milhão de pessoas marcaram presença na Marcha da Vitória, comemorando o início de duas das piores décadas que já vivemos. Estamos preocupados com o rumo que esse levante popular pode tomar e com a associação dele a um discurso midiático vazio.
Não queremos ver uma marcha à la TFP, com pessoas vestidas de branco, cantando o hino e levantando bandeiras com os dizeres “Cansei”. Precisamos de sujeitos engajados em uma luta comprometida com os movimentos sociais e populares, aliados aos anseios dos trabalhadores!
Reiteramos, mais uma vez, nosso ânimo e contentamento em viver tudo isso, mas mantenhamos os pés no chão para não defendermos um discurso uníssono no qual o senso comum pode se misturar com o que deveria ser um discurso crítico e de esquerda.

Camila Petroni é historiadora pela PUC-SP, Assistente Editorial e mestranda em História Social pela PUC-SP. Lattes:http://lattes.cnpq.br/371694913814605
Débora Lessa é socióloga pela PUC-SP, Professora de Sociologia e mestranda em Ciência Política pela PUC-SP. Lattes:http://lattes.cnpq.br/2369964242733352

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Transporte para um Brasil menos injusto


Vemos hoje uma verdadeira insurgência protagonizada pela causa do transporte público. Para a grande mídia em geral e para os pensamentos conservadores não passam de jovens arruaceiros que merecem repressão da polícia. Pode-se mais uma vez perder a oportunidade de debate daquilo que está no âmago da questão: a exploração e o desserviço prestado aos cidadãos/trabalhadores pelos sistemas de transporte Brasil a fora. Os mesmos que defendem o porrete contra os manifestantes viajam a Londres e a Paris e voltam elogiando a qualidade do transporte urbano de lá. Mas se esquecem de uma diferença fundamental para o nosso: naquelas cidades o transporte é público e estatal, voltado para promover a mobilidade dos cidadãos/trabalhadores com vistas a gerar mais mobilidade, eficiência produtiva e, porque não, bem estar. Além da ncontestável maior eficiência e qualidade, o transporte de lá é mais acessível. Em Paris, um bilhete unitário custa 1,70 euro (R$ 4,85) e um carnê com 10 sai por 13,30 euros (R$ 37,90). Mas se o cidadão paga o passe mensal, pode andar a vontade de ônibus, metrôs e trens por 65,10 euros (185,53) – http://www.ratp.fr/fr/ratp/c_20586/tous-les-titres-et-tarifs/. Aqui no Rio de Janeiro, se o trabalhador pagar 60 passagens de ônibus por mês gastará 177 reais (a R$2,95) e de metrô 210 reais (a R$3,50). Nosso salário mínimo é de 678 reais, enquanto o francês chegou a R$ 4063,15 (http://expresso.sapo.pt/salario-minimo-em-franca-sobe-para-142567-euros=f735665). As empresas de ônibus, trem e metrô cariocas introduziram os cartões eletrônicos nos quais se pode carregar o quanto quiser de dinheiro que o desconto é zero, pois isso serve na realidade para reduzir custos operacionais. E é aí que está a essência do problema: o transporte público é privado e voltado para a exploração do usuário. E como se constitui cada vez mais um monopólio, devido à repressão ao transporte alternativo (que no Rio ainda tem o agravante de ser controlado pelo poder paralelo), as empresas agem como querem. A situação piora, quando o prefeito eleito é financiado por essas empresas e frauda um edital de concessão para mantê-las com o monopólio que já detêm a mais de 40 anos (http://oglobo.globo.com/rio/apenas-quatro-empresarios-concentram-um-terco-do-transporte-rodoviario-no-rio-8417193). Pelo menos há 20 anos, todos os prefeitos eleitos recebem contribuições de empresas de ônibus na cidade. O dinheiro doado pelas empresas é retornado em forma de generosos aumentos acima da inflação. Ou seja, neste esquemão, os trabalhadores financiam a campanha de certos grupos políticos pagando o transporte público-privado. Essa cumplicidade, que não é exclusividade carioca, acaba com qualquer isenção do poder público em sua tarefa de regulação do sistema. Milhões de cidadãos/trabalhadores passam de 4 a 6h por dia em deslocamentos e ainda são taxados pelo discurso hegemônico positivista como ineficientes etc. Assim, a luta pela redução do custo da passagem representa algo muito maior. É por uma necessidade imediata, mas contesta e desestabiliza uma ordem econômica e política extremamente exploratória, que envolve a cooptação do poder público pelo setor privado e mostra que o problema é algo a mais do que “culpa dos políticos”. Quem sabe parando as ruas a luta pode desembocar em um debate que avance para o questionamento desta lógica injusta de estruturação do transporte público?

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Michel Foucault, um crítico da instituição escolar

Publicado em: http://revistaescola.abril.com.br/



Poucos pensadores da segunda metade do século 20 alcançaram repercussão tão rápida e ampla quanto o francês Michel Foucault (1926-1984). Por ter proposto abordagens inovadoras para entender as instituições e os sistemas de pensamento, a obra de Foucault tornou-se referência em uma grande abrangência de campos do conhecimento. Em seus estudos de investigação histórica, o filósofo tratou diretamente das escolas e das idéias pedagógicas na Idade Moderna. Além disso, vem inspirando uma grande variedade de pesquisas sobre educação em diversos países. "Foi Foucault quem pela primeira vez mostrou que, antes de reproduzir, a escola moderna produziu, e continua produzindo, um determinado tipo de sociedade", diz Alfredo Veiga-Neto, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Em vez de tentar responder ou discutir as questões filosóficas tradicionais, Foucault desenvolveu critérios de questionamento e crítica ao modo como elas são encaradas. A primeira conseqüência desse procedimento é mostrar que categorias como razão, método científico e até mesmo a noção de homem não são eternas, mas vinculadas a sistemas circunscritos historicamente. Para ele, não há universalidade nem unidade nessas categorias e também não existe uma evolução histórica linear. O peso das circunstâncias não significa, no entanto, que o pensador identificasse mecanismos que determinam o curso dos fatos e os acontecimentos, como o positivismo e o marxismo. 

Investigando o conceito de homem no qual se sustentavam as ciências naturais e humanas desde o iIuminismo, Foucault observou um discurso em que coexistem o papel de objeto, submetido à ação da natureza, e de sujeito, capaz de apreender o mundo e modificá-lo. Mas o filósofo negou a possibilidade dessa convivência. Segundo ele, há apenas sujeitos, que variam de uma época para outra ou de um lugar para outro, dependendo de suas interações. 

Disciplina e modernidade

Foucault concluiu, no entanto, que a concepção do homem como objeto foi necessária na emergência e manutenção da Idade Moderna, porque dá às instituições a possibilidade de modificar o corpo e a mente. Entre essas instituições se inclui a educação. O conceito definidor da modernidade, segundo o francês, é a disciplina - um instrumento de dominação e controle destinado a suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes. Portanto, ao mesmo tempo que o iluminismo consolidou um grande número de instituições de assistência e proteção aos cidadãos - como família, hospitais, prisões e escolas -, também inseriu nelas mecanismos que os controlam e os mantêm na iminência da punição (leia o quadro acima). Esses mecanismos formariam o que Focault chamou de tecnologia política, com poderes de manejar espaço, tempo e registro de informações - tendo como elemento unificador a hierarquia. "As sociedades modernas não são disciplinadas, mas disciplinares: o que não significa que todos nós estejamos igual e irremediavelmente presos às disciplinas", diz Veiga-Neto.

O filósofo não acreditava que a dominação e o poder sejam originários de uma única fonte - como o Estado ou as classes dominantes -, mas que são exercidos em várias direções, cotidianamente, em escala múltipla (um de seus livros se intitula Microfísica do Poder). Esse exercício também não era necessariamente opressor, podendo estar a serviço, por exemplo, da criação. Foucault via na dinâmica entre diversas instituições e idéias uma teia complexa, em que não se pode falar do conhecimento como causa ou efeito de outros fenômenos. Para dar conta dessa complexidade, o pensador criou o conceito de poder-conhecimento. Segundo ele, não há relação de poder que não seja acompanhada da criação de saber e vice-versa. "Com base nesse entendimento, podemos agir produtivamente contra aquilo que não queremos ser e ensaiar novas maneiras de organizar o mundo em que vivemos", explica Veiga-Neto.

Arqueologia do saber

A contestação e a revisão de conceitos operadas por Foucault criaram a necessidade de refazer percursos históricos. Não é sobre os governos e as nações que ele concentra seus estudos, mas sobre os sistemas prisionais, a sexualidade, a loucura, a medicina etc.

Três fases se sucederam em sua obra. A da arqueologia do conhecimento é marcada pela análise dos discursos ao longo do tempo, de acordo com as circunstâncias históricas, em busca de um saber que não foi sistematizado. A genealógica corresponde a um conjunto de investigações das correlações de forças que permitem a emergência de um discurso, com ênfase na passagem do que é interditado para o que se torna legítimo ou tolerado. Finalmente, a fase ética centra o foco nas práticas por meio das quais os seres humanos exercem a dominação e a subjetivação, conceito que corresponde, aproximadamente, a assumir um papel histórico.

A docilização do corpo no espaço e no tempo

Para Foucault, a escola é uma das "instituições de seqüestro", como o hospital, o quartel e a prisão. "São aquelas instituições que retiram compulsoriamente os indivíduos do espaço familiar ou social mais amplo e os internam, durante um período longo, para moldar suas condutas, disciplinar seus comportamentos, formatar aquilo que pensam etc.", diz Alfredo Veiga-Neto. Com o advento da Idade Moderna, tais instituições deixam de ser lugares de suplício, como castigos corporais, para se tornarem locais de criação de "corpos dóceis". A docilização do corpo tem uma vantagem social e política sobre o suplício, porque este enfraquece ou destrói os recursos vitais. Já a docilização torna os corpos produtivos. A invenção-síntese desse processo, segundo Foucault, é o panóptico, idealizado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832): uma construção de vários compartimentos em forma circular, com uma torre de vigilância no centro. Embora não tenha sido concretizado imediatamente, o panóptico inspirou o projeto arquitetônico de inúmeras prisões, fábricas, asilos e escolas. Uma das muitas "vantagens" apresentadas pelo aparelho para o funcionamento da disciplina é que as pessoas distribuídas no círculo não têm como ver se há alguém ou não na torre. Por isso, internalizam a disciplina. Ampliada a situação para o âmbito social, a disciplina se exerce por meio de redes invisíveis e acaba ganhando aparência de naturalidade.

Os alienistas

Publicado em: http://revistacult.uol.com.br/home/

Foucault detectou a tendência da psiquiatria em transcender os muros dos manicômios e associar a loucura a todo tipo de “anormalidade”



No Natal de 1958, Georges Canguilhem escreve a Foucault, depois de ter lido o manuscrito de Loucura e Desrazão: “Não mude nada, temos aí uma tese”.
Naquela época, Foucault ainda estava na Suécia, trabalhando como adido cultural, e enviara seu manuscrito a Canguilhem, que, desde novembro de 1955, havia sucedido Gaston Bachelard na cátedra da Sorbonne, por sugestão de outra grande figura da filosofia francesa do pós-guerra e que havia sido um de seus mestres na rue d’Ulm: Jean Hyppolite.
A frase lapidar e precisa de Canguilhem pode servir como uma espécie de emblema para qualquer avaliação que se faça da “atualidade” da História da Loucura – ou seja, não é preciso mudar nada nesse livro para que ele continue sendo sempre uma fonte inesgotável de reflexão e trabalho.
Penso aqui numa concepção de “atualidade” que não se refere única e exclusivamente àquilo que, desse livro, ainda pode ser considerado legítimo ou verdadeiro, numa espécie de “recorrência” segundo a qual o presente julga o passado de uma ciência, de um campo de saber, baseado em critérios que são do próprio presente.
Como sabemos, o critério da “recorrência”, tão fundamental para a história das ciências professada por Bachelard, foi criticado por Foucault desde, justamente, a História da Loucura. A “atualidade” de uma obra, portanto, é inseparável de sua própria história, entendida aqui tanto como a história de seu surgimento quanto a história de sua posteridade.
Dessa perspectiva, indagar sobre a “atualidade” desse livro exige, antes de mais nada, que façamos essa pergunta com base em nosso próprio solo – o Brasil – e no “presente que hoje somos”, como assim o exige o próprio Foucault.
Trata-se, portanto, de uma “atualidade” que, em vez de cortar os laços entre presente e passado, significa, ao contrário, estabelecer entre eles um espaço necessário de interrogação e interpelação. Assim sendo, o “presente que hoje somos” só adquire a fisionomia que lhe é própria na medida em que pode dirigir-se ao passado – não para venerá-lo, mumificá-lo, ornamentá-lo, mas para recolher seus apelos, suas vozes, mesmo que frágeis e antes que elas se apaguem definitivamente.
Que apelos são esses? Que vozes são essas? São os apelos e vozes, em geral na forma de gemidos, gritos, uivos, no dobrar-se quase animal dos corpos nus, estendidos num chão quente, corpos encarcerados, cujo destino era estar ali para sempre, à espera da própria morte.
Mortos-vivos
Não exagero quando pinto com essas cores o retrato dos antigos asilos, depósitos de loucos, ou melhor, de mortos-vivos, para os quais não havia nenhum consolo, nenhuma esperança.
Essa era a realidade da maioria dos antigos hospitais psiquiátricos brasileiros, que escondiam por trás de suas fachadas pomposas, construídas ainda no final do século 19, uma espécie de miséria diante da qual não havia nenhuma política pública, mas também nenhuma comiseração. O espaço asilar, entretanto, só poderia ser compreendido no exercício desses processos de exclusão absoluta e extrema, à luz de sua própria história.
Eis o primeiro aspecto fundamental que os leitores da primeira hora, de ontem, de hoje, mas também os do futuro reconheceram ou vão reconhecer no primeiro grande livro de Foucault.
Ao contrário de uma história hagiográfica, que transformava o psiquiatra em libertador dos loucos, ao contrário de uma história evolutiva e linear, que saudava o advento da psiquiatria como a ciência que enfim desvelara a verdade da loucura, ou seja, a loucura como doença mental, Foucault restitui a questão a um plano absolutamente inédito, o da história, mas não o de qualquer história, e sim aquela do embate entre razão e desrazão.
Com isso, ele inscrevia a questão da transformação da loucura em doença mental no interior dos processos que constituem a partilha entre razão e desrazão, uma partilha que fundou, como se sabe, a própria filosofia.
Com isso, chegamos ao segundo ponto: ao inscrever o nascimento do asilo e da psiquiatria no interior do embate entre razão e desrazão, Foucault transforma ambos, o asilo e o psiquiatra, num problema filosófico. E isso não é pouco, pois significa também reinscrever o espaço tradicional próprio à filosofia, que parecia absolutamente indiferente a esses “objetos” estranhos, esquisitos, julgados sem dúvida como pouco dignos diante das grandes questões acerca do ser, da verdade, da essência.
Formado na Escola Normal Superior da rue d’Ulm, Foucault não poderia ser acusado de desconhecer os grandes temas da tradição filosófica. Leitor de Nietzsche, ele pode, desde o início dos anos 1950, lutar contra o “pecado hereditário” de todos os filósofos: “a falta de sentido histórico”.
Mas também leitor de Kant, sua decisão de escrever uma tese complementar sobre a Antropologia do Ponto de Vista Pragmático já anunciava sua ideia posterior de que toda filosofia deve ser uma “ontologia do presente”.
Os três “Hs”
Formado na leitura de Husserl, Heidegger e Hegel, os três “Hs” que dominaram grande parte do pensamento filosófico francês do pós-guerra, ele aprendeu, distanciando-se da fenomenologia, a questionar o estatuto do sujeito.
Com Althusser, outro de seus mestres, ele tomou contato com o pensamento de Marx e com o marxismo, embora sempre tenha recusado a distinção entre ciência e ideologia. Aproximando-se do último Merleau-Ponty (e, com isso, afastando-se decididamente de Sartre), pôde, enfim, estabelecer um diálogo entre a filosofia e as ciências humanas.
É na convergência – e na divergência – de todos esses caminhos que a História da Loucura pôde surgir, transformando o filósofo num interlocutor fundamental e necessário para um conjunto de questões que pareciam não se incluir no campo nobre da filosofia.
Nessa perspectiva, vemos surgir um tipo especial de filósofo-historiador que deixou marcas profundas e indeléveis no Brasil. Se a primeira viagem de Foucault ao Brasil o confrontou com a ditadura militar no campus da USP, suas conferências sobre As Palavras e as Coisas não produziram o efeito posterior provocado por suas outras visitas ao nosso país.
O que Foucault passa a expor no Brasil, nos anos 1970, em diversas ocasiões, no Rio de Janeiro, em Minas, na Bahia, em Pernambuco, no Pará, é o resultado de uma profunda autocrítica à História da Loucura, tal como, em especial, os cursos “O Poder Psiquiátrico” (1973-1974) e “Os Anormais” (1974-1975) documentam com eloquência.
Eis, portanto, a fulgurante “atualidade” desse livro: seu próprio autor volta-se para ele para retomá-lo, reinscrevê-lo (e não reescrevê-lo) nas novas possibilidades de análise abertas pela problematização das relações entre saber e poder. À luz dessa autocrítica, a História da Loucura teve seu poder de fogo visivelmente ampliado, na medida em que o espaço asilar se legitima não como espaço da repressão, mas como espaço disciplinador, normalizador.
Por outro lado, ao avançar em seus estudos acerca do “poder psiquiátrico”, Foucault pôde distinguir dois movimentos essenciais na história da psiquiatria do século 19: o primeiro quando apenas o louco transformado em doente mental era seu objeto e o asilo o espaço institucional de sua intervenção, correspondendo às três primeiras décadas do século 19.
O segundo, entretanto, implica mostrar de que maneira a psiquiatria como que arromba os muros do asilo e torna sua intervenção ampliada para todo o corpo social. Ao louco como doente mental vão juntar-se todos os “anormais”. Agora, sim, a psiquiatria, triunfante, pode ser legitimada como o saber-poder por excelência, que aglutina, engloba, organiza, diversifica e rearranja tudo que diz respeito à distinção entre normal e anormal.
Ao Foucault formado na rue d’Ulm não escapou, entretanto, que essa distinção, na aparência puramente médica e, portanto, “científica”, se relacionava também com outras duas, uma epistemológica, por meio da separação entre o verdadeiro e o falso, e outra ética, por meio da distinção entre o moral e o imoral. Entre anormalidade e loucura estabelecia-se um liame indissociável, e a função da psiquiatria como uma forma de medicina social estava inteiramente legitimada.
Foi assim, então, que as reflexões de Foucault puderam estar na origem do movimento antimanicomial e na base das formulações essenciais da reforma psiquiátrica brasileira.
Isso não é pouco. Mas também não é suficiente. A “atualidade” da História da Loucura ganha assim seu elemento mais essencial, aquele que nos exige escutar as vozes que vêm do presente. Não há mais gritos, não há mais nenhum clamor?
Ernani Chaves é professor na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará e autor deFoucault e a Psicanálise (Forense Universitária)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Seminário "César Leite por Verdade, Memória e Justiça"!


Mesa-redonda “PARADOXOS E POTÊNCIAS NAS POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DA PSICOLOGIA NAS MEDIDAS SÓCIOEDUCATIVAS”

O grupo Transversalizando convida-os para a Mesa-redonda "Paradoxos e Potências nas possibilidades de Atuação da Psicologia nas Medidas Sócioeducativas".

Fala 01: Medida Socioeducativa e Práticas Psi: exTensão e inTensão na experiência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Profª. Dra. Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto (UFRGS).
Fala 02: Socioeducação no Rio de Janeiro: reflexões sobre a medida de internação. Profª. Dra. Hebe Signorini Gonçalves (UFRJ).
Fala 03: A produção racista do adolescente como infrator: judicialização e medicalização em cena no dispositivo de segurança. (UFPA).
Mediadora: Mestranda Adriana Elisa Macedo (PPGP).
 
Realização: Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFPA
Apoio: Instituto de Letras e Comunicação – ILC 
Coordenação: Transversalizando – Profª Dra. Flávia Lemos - UFPA

Data: 11/06/2013 - Horário: 15h às 17h - Vagas: 60
Local: Auditório Central do Instituto de Letras e Comunicação – ILC/UFPA

As inscrições serão realizadas no Bloco “C” da UFPA 
Horário: 8h as 12 e das 14h às 17h – Taxa de participação: R$ 5,00

Mesa-redonda “SAÚDE, DIREITOS E PSICOLOGIA: PARADOXOS DOS PROCESSOS DE MEDICALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES”

O grupo Transversalizando convida-os para a Mesa-redonda “Saúde, Direitos e Psicologia: Paradoxos dos processos de Medicalização de crianças e adolescentes"


Fala 01: A infância higienizada: contradições da sociedade liberal. Profª. Dra. Maria Lúcia Boarini (UEM).
Fala 02: Algumas análises a respeito do protagonismo juvenil: implicações para a Psicologia Social. Prof. Dr. Marcelo de Almeida Ferreri (UFS).
Fala 03: Quando o cuidado é transformado em medicalização totalizante da vida na proteção de crianças e adolescentes. Profª. Dra. Flávia Cristina Silveira Lemos.(UFPA)
Mediadora: Mestranda Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira (PPGP).
     
Realização: Núcleo Pará - Fórum sobre a medicalização da educação e da sociedade e Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFPA
Coordenação: Transversalizando – Profª Dra. Flávia Lemos - UFPA
Apoio: Instituto de Letras e Comunicação – ILC 
Data: 13/06/2013 - Horário: 15h às 17h - Vagas: 60
Local: Auditório Central do Instituto de Letras e Comunicação – ILC/UFPA



As inscrições serão realizadas no Bloco “C” da UFPA
Horário: 8h as 12 e das 14h às 17h – Taxa de participação: R$ 5,00