sábado, 30 de março de 2013

Psicologia e Direitos Humanos

Publicado em: http://www.crprj.org.br/

Entrevista com Luciana Knijnik (CRP 05/33458), psicóloga e militante de direitos humanos.

1) Como você vê a relação entre Psicologia e direitos humanos?
A Psicologia tem uma tradição de ver seu trabalho como não intervindo no campo político. Mas todo psicólogo é político, querendo ele ou não, porque a prática do psicólogo é atravessada por todas as forças econômicas, sociais, culturais. E, ao mesmo tempo, o psicólogo também está intervindo nesses mesmos campos que compõem a produção de subjetividades.
Nesse sentido, o campo dos direitos humanos não é um especialismo, não seria uma especialidade do psicólogo, mas uma maneira de ver o mundo e de agir, de produzir sua intervenção.

2) Como a questão dos direitos humanos afeta o cotidiano profissional dos psicólogos?
Ela está presente em todo nosso campo de atuação. Os valores que estão colocados nas declarações de direitos humanos e em todo o Sistema de Garantias pautam, inclusive, o nosso código de ética. Ele está embasado nas declarações de direitos humanos: o respeito, a promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade, da integridade etc. Todos esses são valores e bandeiras de luta do campo dos direitos humanos, mais isso pode acontecer em qualquer espaço: no consultório particular, em uma instituição, em um espaço de militância
etc.

3) Como você vê o tratamento dado aos direitos humanos hoje em nossa sociedade? Que tipos de violações ainda são cometidas?
É preciso ver que há várias concepções sobre o que são direitos humanos. Os direitos humanos são resultado de um processo histórico, das lutas dos povos e, dependendo do momento histórico, eles foram usados com uma intenção ou outra. No período da ditadura militar, a discussão sobre direitos humanos ganhou força no Brasil, principalmente porque os inimigos eram, em muitos casos, filhos da classe média. Hoje em dia, os atingidos pelas maiores violações de direitos humanos são os pobres. Por isso, diz-se muito que direitos humanos é “coisa para defender bandido”. Enquanto eram os filhos da classe média e trabalhadores que estavam sendo atingidos, essa discussão tinha uma legitimidade. Então, parece que hoje em dia ainda temos que colocar em discussão tanto o conceito de direito quanto o de humano. O que vem se produzindo é que quem é pobre ou bandido é colocado na categoria de “não humano”, então não teria direitos - assim como, na época da primeira Constituição, os escravos não eram considerados humanos, mas propriedade privada, então estavam fora do tema de garantia de direitos, porque não eram cidadãos. Hoje, permanece a mesma lógica.

4) Mas, nessa época, isso estava colocado na Lei. Hoje, a Constituição diz que todos são iguais perante a Lei...
Se formos abrir o jornal cotidianamente, está sendo produzida essa associação da pobreza e de quem comete algum delito como “não humano”, colocando-os como monstros, pessoas que não têm propriedade de suas faculdades mentais. Então, começamos a ter essa sensação, de que essas pessoas estão fora do sistema de garantias. Aí, está a primeira falácia da Declaração de Direitos Humanos, que diz que todos nascem livres e iguais. De fato, sabemos que isso não acontece, as pessoas vivem em situações muito desiguais, então isso já as coloca em patamares diferentes. Não podemos dizer que elas nascem iguais, porque elas não nascem com as mesmas condições de acesso nem aos direitos básicos. Essa é uma das lutas no campo de dos direitos humanos: os direitos básicos de alimentação, de moradia, de saúde etc., mas direitos humanos não são só isso; são muito mais, são uma luta pelo direito à potencialidade
que a vida permite e nem todos têm acesso.

5) Sobre essa questão que você comentou, de que se diz que direitos humanos são só para bandidos, como esse discurso é produzido? Como a Psicologia pode contribuir nesse ponto?
A Psicologia vem contribuindo mais para legitimar essa visão, na medida em que patologiza crimes e delitos e, em muitos casos, não vem promovendo essa discussão sobre o modo como estamos vivendo e como isso leva a determinadas condutas. Então, enquanto a Psicologia continuar fazendo discussões no campo do individualismo, não vamos ganhar força para fazer esse debate com mais propriedade. Os laudos produzidos pelos psicólogos são, muitas vezes, um instrumento disso, de legitimar essa patologização da pobreza.

6) Você está lançando o documentário Arquivos da Cidade. Como essas questões sobre direitos humanos estão presentes nele?
Esse é um trabalho que comecei em 2005, quando iniciei meu mestrado na UFF, e comecei minha militância no Grupo Tortura Nunca Mais. O tema da minha pesquisa era a experiência da tortura, então trabalhei com pessoas que foram torturadas no período da ditadura e pessoas que foram torturadas após o término oficial da ditadura militar. Já nessa época, comecei a trabalhar com vídeo – sou psicóloga, não sou da área do cinema, mas utilizei esse recurso como instrumento de trabalho, então, esse documentário que estou lançando é um trabalho com entrevistas com pessoas que eram militantes no período da ditadura no Rio Grande do Sul. Ele é um instrumento para discutir não só a violência de Estado na ditadura, mas os mecanismos que ainda hoje permanecem. Ele é um dispositivo para que as pessoas possam falar dessa experiência. Vemos que essa é uma experiência que fica silenciada. Como não temos no nosso tecido social no Brasil um ambiente que permita que as pessoas falem dessa experiência, elas acabam ficando restritas ao âmbito do privado. Então, esse é um instrumento de intervenção, também do psicólogo. Porque, às vezes, achamos que a Psicologia só tem determinados campos de atuação, e acho que ainda podemos inventar novas práticas para o psicólogo. Às vezes, achamos que fazer uma música, um filme ou uma pintura não tem nada a ver com a Psicologia, mas tudo isso pode ser recurso para a prática do psicólogo.

7) Você falou sobre pessoas torturadas após o término da ditadura. De que formas a tortura ainda está presente em nossa sociedade?
A tortura está absolutamente legitimada. Em todas as prisões, cadeias e espaços que seriam de recuperação de jovens, a tortura é uma prática que está absolutamente instituída. E fechamos os olhos para isso. Não só fechamos os olhos como a população, muitas vezes, apoia explicitamente essas práticas, dizendo que bandido tem mais é que sofrer mesmo, que quem cometeu algum crime tem que pagar por isso etc. É certo que tem muita gente sendo torturada em nosso país.

4 comentários:

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  2. Não é de se estranhar o atual distanciamento da Psicologia com os Direitos Humanos, pois o próprio histórico elitista e de aliança da ditadura com Psicologia em nosso país, infelizmente, já pode nos dizer muita coisa. Uma profissão que já contribuiu e, de certo, ainda contribui, para que sejam tachados de "anormais", de "pessoas-resistentes-às-regras", de loucos e delinquentes, aquelas pessoas que simplesmente não se sujeitam a calar frente às injustiças que vivenciam dia-a-dia. O subversivo agora é o louco, o "do contra". E quem possibilita este diagnóstico? Qual o poder-saber que a Psicologia exerce em nosso meio? Que condutas são permitidas e quais são marginalizadas por este saber? A serviço de quem nós estamos? Será que é realmente sinal de saúde estar bem ajustado a uma sociedade verdadeiramente doente? O que saúde? É apatia, conformismo, indiferença? Hoje a Psicologia ainda dita as regras em diversas instituições, seus relatórios em varas especializadas, por exemplo, muitas vezes servem de sentenças cruéis a vidas e vidas. É necessário que atuemos de forma contextualizada, atentos aos abusos que somos passíveis de cometer caso negligenciemos as tantas lições que a história nos traz. Ou então, podemos continuar a nos fazer de cegos e surdos, fingindo que nada-sei, cometendo os nossos "pequenos assassinatos cotidianos", como bem define Maria Helena Patto, violando nosso código de ética e reafirmando os mais de 50 anos de compromisso com as elites de nosso país, como diria a Anna Bock.

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  3. O envolvimento da Psicologia com as políticas públicas é primordial para a construção do que denominamos de subjetividade privatizada, pois, apesar da idéia de algo exclusivamente interior ao indivíduo e sem influência do meio social em que vive, aquela varia muito com o ambiente a qual é exposta, sendo tanto produtora como produto.
    Logo, distanciar a Psicologia do campo político é deixar de compreender aspectos importantíssimos para a vida do sujeito, sendo perigoso partir de uma análise sem entender o seu meio e qual a sua posição social neste. O resultado da análise tenderia a ser muito diferente da realidade do indivíduo.
    A garantia dos direitos humanos, como é defendida no texto pela psicóloga Luciana Knijnik, já apresenta a sua parcialidade, pois o próprio conceito de “humano” não é usado para todos. Como garantir e defender o direito a escolaridade para alguém que não é humano? Tal idéia parece, inclusive, justificar a falta de estruturação dos serviços públicos no país. Como se estivéssemos “jogando dinheiro fora” educando e cuidando de não-humanos, logo, animais inferiores.
    A partir daí, pode-se notar como é importante a intervenção de um psicólogo para trabalhar juntamente com este sujeito considerado não-humano na construção da sua subjetividade, a qual, muito provavelmente, será abalada por esta exclusão pelo seu meio social.
    A Psicologia pode e deve intervir de formas construtivas para a reforma desta questão dos direitos humanos, do que é ser considerado humano e o que isto implicará na vida do sujeito e de toda a sociedade. A Psicologia é, portanto, ligada sim ao cenário político. O próprio curso de bacharelado contém muitas disciplinas voltadas à esfera pública.

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  4. É de grande importância para a psicologia essa discussão e o envolvimento nas questões de direitos humanos e politica. Mais comprometimento dde nossa categoria (estudantes de psicologia,professores e profissionais da área), se tratando de tomar consciência e trazer essa consciência para o contexto que vivemos. Seja respeitando a opinião dos outros,sendo nós mesmos o próprio exemplo de escuta e interventores para a sociedade de direitos. De uma sociedade que precisa falar e reivindicar pelo bem comum, que queira sim, abrir mão de certos privilégios ou desejos de privilégios em prol de uma sociedade de direitos. Comecemos por nós mesmos em nossa sala de aula, nos grupos sociais e muito mais em nossos lares. E será um grande inicio.

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