quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O que estamos fazendo com nossas crianças?

Texto de Marcelo Domingues Roman, docente da Universidade Federal de São Paulo. É doutor (2007) em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). É graduado pelo Instituto de Psicologia da USP, com licenciatura pela Faculdade de Educação da USP e aprimoramento pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Tem experiência nas áreas de Psicologia e Educação, com ênfase em Psicologia do Ensino e da Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: análise institucional, cotidiano escolar, educação inclusiva, etnografia, adolescência em conflito com a lei e coordenação pedagógica.
Saiba mais sobre o autor em: Currículo Lattes!

Publicado em: medicalização.org.br

Torna-se cada vez mais comum crianças e adolescentes serem encaminhados a serviços de saúde porque apresentam problemas na escola. Esse fenômeno não é novo e tem sido chamado de medicalização da educação: trata-se de reduzir questões escolares, e consequentemente sociais, a problemas médicos. Isso vem se intensificando a partir do uso de psicoestimulantes para controle de hiperatividade e incremento da capacidade de atenção. Também tem se tornado comum crianças e adolescentes serem encaminhados a serviços de justiça por razões semelhantes, sobretudo quando assumem formas agudas ou tendem a se cronificar, evidenciando, assim, outro fenômeno também conhecido entre nós, a chamada judicialização, ou seja, a redução das mesmas questões a problemas de justiça. Se no primeiro caso assistimos à administração de nocivas drogas psiquiátricas a sistemas nervosos ainda em formação, no segundo nos assombramos com o selamento de destinos à margem da sociedade e, pior, operado por profissionais encarregados de proteger e tratar a infância.
A apresentação sucinta de um caso pode deixar mais claro o que estou afirmando. Wilson era um aluno de 5º ano quando o conheci. Ele costumava ter “surtos” – assim eram chamados, pelos agentes escolares, seus ímpetos de indisciplina e aparente descontrole. Em um desses ímpetos, a escola chamou a polícia, que a muito custo o controlou e decidiu por enviá-lo ao hospital em uma ambulância. O acontecimento é assustador, ainda mais se tratando de um menino de 10 anos. Mas, dirão os da escola, seu comportamento atingiu um nível inaceitável: agredia colegas e educadoras, gritava, xingava, saía correndo pelos corredores do prédio. Tanto é que havia sido diagnosticado por um especialista como portador de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), tendo sido lhe receitado Ritalina®. E, como estamos em um município em que esse medicamento é distribuído gratuitamente à população, não haveria razões para sua destemperança, a não ser por negligência do aluno ou de sua família.
É preciso que analisemos com calma. O caso é complexo e não aceita respostas simples, o que, de cara, já nos faz desconfiar de uma saída baseada apenas no controle medicamentoso. A quem se dedica a estudar seria-mente o fenômeno humano, torna-se claro que estabelecer causas lineares entre causa e efeito é, no mínimo, ingenuidade. Há que se pensar, sempre, em multideterminação, o que afasta a resposta tão frequente quanto simplista de que o comportamento de Wilson é efeito de mau funcionamento cerebral. A medicina não dispõe ainda de exames que afiram desequilíbrios neuroquímicos, ainda que estes desequilíbrios sejam propagandeados como causas inequívocas de supostos transtornos. Além disso, autocontrole voluntário do comportamento e da atenção são habilidades ensinadas e aprendidas, e não simples efeitos do funcionamento cerebral. Portanto, é mais acertado pensarmos que o funcionamento cerebral é efeito de processos de aprendizado social, não o contrário.
Assim, as raízes da forma como Wilson se comporta devem ser buscadas nas suas relações com o contexto que o envolve, ao longo de toda sua existência. Isso significa levar em consideração sua vida dentro e fora da escola; sua história familiar e seu percurso na instituição. Escola e família, porém, também devem ser contextualizadas social e historica-mente. É preciso saber a que classe social pertence a família, a que condições de vida está sujeita, qual a qualidade das políticas públicas de bem estar social a que tem acesso, quais as transformações tecnológicas, eco-nômicas e sociais mais amplas que acabam influenciando o comporta-mento não só de Wilson e sua família mas de todos nós. Do mesmo modo a escola: qual a sua qualidade? Os professores são bem pagos, têm boa formação, boas condições de trabalho e participam democraticamente das decisões institucionais? Os conteúdos e métodos de ensino são adequa-dos? Toda essa problemática é dissimulada quando apenas ministramos, ou tentamos ministrar, comprimidos de Ritalina® para Wilson.
Mas há quem ganhe com isso, evidentemente. Em primeiro lugar a indústria farmacêutica com seus lucros astronômicos, capazes de financiar pesquisadores que divulgam o transtorno e o tratamento como verdades científicas avançadas e inquestionáveis. O sistema de saúde mental infantil do município também ganha, pois oferece com menor gasto uma resposta à demanda, uma vez que não se dispõe a lidar com a complexidade envolvida na questão. A escola e a professora de Wilson, caso ele tome o remédio, também ganham: se asseguram que o problema está apenas no aluno ou em sua família e não precisam, assim, questionar seu próprio trabalho. Então, quer dizer que o remédio funciona? De fato, os psicoestimulantes têm a capacidade inicial de aumentar a performance das funções cognitivas, entre as quais a capacidade de focar a atenção. É por esse motivo que a cocaína, ou mesmo a Ritalina®, são utilizados por profissionais ou estudantes em momentos estratégicos ou de pressão.
Uma criança medicada na sala de aula é, inicialmente, uma criança focada e quieta. Sim, porque, paradoxalmente, o estimulante faz com que as crianças se aquietem, a ponto de se tornarem como zumbis. Na verdade, zombie-like é um sinal de toxicidade da medicação, cuja lista de reações adversas é alarmante: nervosismo, insônia, cefaléia, discinesia, tontura, dor abdominal, humor depressivo transitório, retardamento do crescimento etc. – a lista é grande; basta consultar a bula do medicamento. Seu consumo prolongado é sugerido, por certas pesquisas, como determinante de peso para a drogadição na adolescência e a ocorrência de pensamentos suicidas. Há longo prazo, parece que o medicamento induz a efeitos inversos do que se propunha a realizar: agitação motora e dificuldade de aprendizagem. Esse é o preço que estamos dispostos a pagar para calar nossas crianças?
Fiquei inicialmente animado quando soube que o caso de Wilson seria discutido por profissionais de saúde, assistência social e educação, numa espécie de reunião inter-serviços. Nessa reunião, foi comentada sua complexa situação familiar: mãe viciada em cocaína, capaz de se prostituir para conseguir a droga; pai enfraquecido; relação erotizada entre mãe e filho, ambos refratários a prescrições medicamentosas. Isso sem contar outros agravantes comuns a vidas castigadas pela pobreza. A discussão foi bem rica, pois contou com diversas perspectivas profissionais provenientes de diferentes serviços públicos. Porém, algo unificou a diversidade: a sensação de impotência diante da complexidade do caso. Optaram então por acionar o Ministério Público, a fim de que este pressionasse Wilson e sua mãe a aderirem à medicação. Assim, um caso que manifestava, a seu modo, a difícil condição social a que são sujeitas inúmeras famílias em nossa sociedade, um caso que tinha como uma de suas vias de expressão condutas antissociais na escola, expressão esta transformada em patologia a ser medicada, agora encaminhava-se a se tornar um caso de justiça.
Não é aceitável que continuemos a culpar e reprimir aqueles que mais sofrem as condições aviltantes de nosso funcionamento social. Não é possível que continuemos formando profissionais que se utilizam de meios pretensamente eficazes, neutros, “científicos”, para perpetuar formas de submissão dos deserdados e de desresponsabilização das instituições sociais. São necessários investimentos maciços em melhores condições de vida, em relações sociais humanizadas e em condições dignas de trabalho nas instituições de educação, saúde e assistência social, não na indústria farmacêutica nem em aparatos de controle jurídico e policial de problemas sociais.

10 comentários:

  1. Há um processo de medicalização da educação e da SOCIEDADE, o qual deve receber a devida atenção do poder público e do meio acadêmico.
    É um absurdo o fato de que as questões da vida social, sempre complexas sejam reduzidas à lógica médica, vinculando aquilo que não está adequado às normas sociais a uma suposta causa orgânica, gerando lucros exorbitantes aos conglomerados farmacêuticos para manter essa política medicalizante vigente.

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  2. É incrível como hoje em dia as crianças não podem mais ser agitadas e "elétricas". Ter muita energia para gastar, brincando e pulando de um lado e de outro virou questão de doença. Antigamente, isso era visto como sinônimo de ser uma criança saudável, cheia de energia para gastar. É claro que existem casos que realmente ultrapassam os limites, mas o problema é que bastar ser agitado e não prestar atenção na aula que a criança tem TDAH. E as coisas não podem ser assim, é preciso conhecer os ambiente em que vive aquela pessoa, como são suas relações familiares e escolares, enfim, verificar se há algo que esteja influenciando aquele comportamento. O que não se pode é medicalizar as crianças e achar que tudo vai se normalizar. Remédio é coisa séria e prescrevê-los à crianças, em plena formação, acarretará em problemas de ordem biopsicossocial no futuro.

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  4. Vejo que houve um aumento bastante significativo de crianças com TDAH, depressão, dislexia entre outras doenças.
    Hje em dia, quando uma criança corre um pouco mais é chamada de hiperativa, se troca letras quando esta iniciando seu processo de alfabetização (coisa que acontece com todos quando se está aprendendo a escrever) dizem que ela possui dislexia.
    Essas doenças são as causas de um "comportamento inadequado" da crianças ou e atribuido ao seu organismo a responsabilidade pelo aprendizado. Ou seja, culpamos a criança por ela não aprender, e assim vamos medicando ela e deixando a farmácia ocupar o lugar da escola, e os remedios ocupar o lugar dos pais e dos professores.

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  5. A matéria demonstra que atualmente os problemas sociais são resolvidos por dois caminhos ou por meio da medicalização ou por meio da judicialização, ou os dois são utilizados conjuntamente.Tais caminhos são mais fáceis, pois não precisam questionar o que está por detrás deste tipo de acontecimento. Não há preocupação com os efeitos colaterais que o indivíduo irá sofrer quando estiver inserido nestes dois "regimes". Não é conveniente para o Estado averiguar as causas deste tipo de acontecimento, para não se interferir nas relações de poder estabelecidas.

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  6. A culpabilização do indivíduo é sempre a saída mais fácil do Estado resolver os problemas sociais. É inadimissível, sob meu ponto de vista, que se prejudique o desenvolvimento de uma criança ou adolescente com o uso de drogas como a Ritalina sem nem simplesmente levar em considerações o motivo deste indivíduo se comportar de maneira "inadequada". Qualquer comportamento que desvie do padrão é patologizado e deve ser tratado, de preferência com medicamentos que movimentam uma quantidade absurda de capital. As individualidades são simplesmente ignoradas...

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  7. Atualmente tudo está indo para o caminho da medicalização. Tudo é patologizado. Qualquer pessoa pode diagnosticar você. Se é agitado tem TDAH, se não é agitado deve ter algum outro distúrbio. A industria da medicalização fez com que distúrbios e doenças ganhassem "fama." É mais fácil medicar que investigar o que está realmente acontecendo com nossas crianças.

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  8. O remédio é a magia em forma de comprimido. Parece que a cada dia diminuem as tentativas de compreensão do indívíduo em face de sua adaptação ao esperado pela escola, pela igreja e podelos diversos setores sociais.

    Sempre brinco que algum dia acabaremos criando os X-MEN! um conjunto de mutantes com habilidades especiais... talvez, inclusive seja esse o sonho de professores que indicam seus alunos ditos hipertaivos e disléxicos aos psiquiatras!

    A ritalina lava a alma dos inquietos!

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  9. Interessante ver como ainda se acredita que, acionando a Justiça e forçando o garoto a ingerir drogas tão cedo, os problemas em questão serão resolvidos. A conjugação de judicialização e medicalização da educação não traz soluções, pelo contrário: consolida um pensamento de intervenção sobre a pessoa mediante a utilização do aparato estatal. Cria mais problemas e mascara aquilo que deveria estar sendo discutido (o contexto social do garoto, por exemplo).

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  10. Precisamos criticar e, principalmente, estarmos atentos à nossa formação. Há pouco tempo atrás as discussões acerca de temas semelhantes na Universidade eram praticamente nulas, agora ainda temos a oportunidade de minimamente trazer isto à pauta, ler autores críticos, pensar as pessoas como portadores e portadoras de direitos, sermos formados com a contribuição de profissionais verdadeiramente comprometidos com a educação. E ainda assim parece que um bocado de informações passam de um ouvido ao outro sem passar pelo crivo que as traduzem em conhecimento. A nossa linguagem é médicalizante, nossos olhares, muitas vezes, são olhares médicos, nosso fazer também medicaliza. E parece que também não nos importamos que assim o seja. Como traz o autor do texto "Não é possível que continuemos formando profissionais que se utilizam de meios pretensamente eficazes, neutros, “científicos”, para perpetuar formas de submissão dos deserdados e de desresponsabilização das instituições sociais". A análise de implicações não devem estar apenas nos textos que lemos, ela precisa ser real.

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