domingo, 24 de fevereiro de 2013

Medo vira pretexto para destituir a liberdade e criminalizar pobres


A onda de violência no estado de São Paulo põe em questão o papel e a função das forças de segurança pública existentes no país. Para o advogado que atua na área de direitos humanos Renato Roseno, é preciso indagar se houve mudança no papel do Estado e da Polícia Militar (a que mais mata no mundo) nos últimos anos, ou se esse é o caráter histórico dessas instituições. Os movimentos sociais responsabilizam as forças policiais pela violência contra a população, principalmente de baixa renda e negra.


“O Estado precisa educar e coagir a sociedade, e um dos dispositivos para fazer isso são as instituições de segurança pública. A violência do Estado é necessária para a produção da obediência das classes mais baixas”, avalia Roseno.
Ele participou na última segunda-feira (3) do debate “Desmilitarização da polícia e da política”, ocorrido na PUC-SP. Estiveram presentes representantes da Uneafro, Terra Livre, PSOL, MTST e do coletivo feminista Revolução Preta. Confira a entrevista dada por Renato Roseno ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato - Como a violência está relacionada com o projeto de estado brasileiro?
Renato Roseno - O projeto está assentado na produção de exploração da opressão. Ele gera contradições sociais, que devem ser administradas por coesão ou por coerção das classes pobres, consideradas “perigosas”. O conflito social é tratado como desvio, como perigo. Então, o perigoso tem que ser estigmatizado, disciplinado, corrigido e punido.
Não é à toa que o direito penal é da idade do capitalismo. O projeto de gestão do conflito social, por via do dispositivo penal, nasce quando o estado capitalista ganha racionalidade e solidez. O estado tem que ser o monopólio da força para dar ordem, portanto, o que está fora da ordem, por algum motivo, tem que ser administrado.
Primeiro você “retribui a sociedade, vingando a sociedade”. Segundo você dá o exemplo e, por último, você “ressocializa”. Mas na verdade você não ressocializa ninguém pelo dispositivo penal. Você apenas seleciona e estigmatiza.
Como a mídia influi nesse projeto?
Ela produz legitimidade sobre quem é o perigoso, quem é o suspeito e quais são os mecanismos que devem ser dirigidos a ele. Por outro lado, ela produz e reproduz medo. O medo é uma ideia política fundamental. Como a classe trabalhadora está com medo, não produz rupturas. O medo é o pretexto para destituir a liberdade.
Na lei geral da Copa, por exemplo, em nome do combate ao terror, se aprova o recrudescimento penal contra os pobres. A mídia, portanto, produz o estigma, legitima o dispositivo penal, e também produz pânico social.
E a seletividade do encarceramento também está incluída?
O encarceramento é o resultado do dispositivo penal. A criminalização sempre será seletiva. Os negros, jovens e pobres estão nas cadeias porque eles são os extermináveis de agora. Quem não é administrado pela fábrica, quem não é administrado pela política social, vai ser administrado pelo dispositivo penal.
Essa produção de criminalização não é um defeito do sistema penal. Não é só no Brasil que se prende pobre. Em outros países também se prende pobre, porque o mecanismo penal é feito para os pobres.
Como a privatização dos presídios se insere nessa questão?
Tem a privatização dos presídios e a privatização da segurança. Para cada trabalhador da segurança pública, você tem três na esfera privada.
Não é por acaso que vários senadores e deputados são donos de empresa de segurança. Quem é que vende câmera? Quem é que vende segurança? Quem é que vende cerca elétrica? É o capital. O capital também lucra com o medo.
Como você analisa o projeto de redução da idade penal?
É a pior medida que possa ser empregada no Brasil. São os jovens que vão ser criminalizados. Você reduz a criminalização pra mantê-los mais tempo encarcerados.
Como que se aplica, na prática, esse projeto de militarização na sociedade brasileira?
É um projeto de sociabilidade capitalista. O estado mínimo produz o estado máximo. Isso significa que o estado tem que montar um aparelho repressivo por causa de uma demanda por ordem e segurança criada no período neoliberal.
Analisando os orçamentos militares na América Latina, dá para ver que o Brasil está crescendo muito em seu gasto com as forças armadas. Eu não só chamaria de militarização da questão social, mas é a criminalização da questão social.
Como é possível, diante desse cenário, desmilitarizar a polícia e a política?
Quanto mais ordem punitiva e penal, mais violência. Nós temos que disputar. É uma disputa ideológica. Aquilo que é vendido para a população, dizendo que vai resolver o problema, na verdade, é o que vai agravar o problema. Quanto ma“O Estado precisa educar e coagir a sociedade, e um dos dispositivos para fazer isso são as instituições de segurança pública. A violência do Estado é necessária para a produção da obediência das classes mais baixas”, avalia Roseno.
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Renato Roseno, advogado que atua na área de direitos humanos, analisa a dinâmica política e social que põe em crise a segurança pública no país; para ele, quanto mais ordem punitiva e penal, mais violência. 
Saiba mais sobre o autor acessando seu Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4431126J5

12 comentários:

  1. Reflexos da ditadura: a segurança pública a serviço de determinadas classes sociais ao invés da polícia legitimadas tendo por fim a paz social.
    E quem ganha com isso? O mercado de segurança privada, que aufere lucros exorbitantes em meio a uma sociedade que parece viver encarcerada com seus muros autos, grades, cerca elétrica e afins.
    Enquanto isso, a exemplo da charge, a polícia perseguindo os estiguimados pela classe dominante, mantenedora do status quo da injustiça e violência ilegítima.

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  2. Mais uma vez, a marginalização daqueles que representam algum empecilho aos detentores do poder é a ferramenta utilizada para oprimir e estigmatizar os desfavorecidos economicamente e, demais, criar uma forma de aumentar os lucros com a comercialização do medo, largamente difundida como solução adquirir utensílios de segurança que garantem essa proteção ante a parte criminalizada da sociedade. Em um país que possui um sistema penitenciário falido e ineficiente, é inteiramente irresponsável discutir redução penal como se isso fosse a redenção da maldade ao estado de calmaria. Além da criminalização da pobreza, é lamentável perceber que a manutenção desse processo excludente é garantido pelo aparato de segurança estatal, o qual, em teoria deveria garantir a igualdade de direitos entre os indivíduos.

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  3. Essa onda de criminalização é uma forma totalmente absurda de culpabilização sobre aquilo que deveria ser papel do Estado. A culpa recai sempre sobre as parcelas menos favorecidas da população, parcela que vive alienada pelos meios de comunicação e desconhece seus direitos como cidadãos. Como já dito em uma mùsica de Max Gonzaga, "Porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida".

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  4. Por que não paramos de falar em "culpa" e falamos de "responsabilidade"? É certo que nós delegamos o poder aos nossos representantes, mas o que fazemos então é nos excluirmos dele! Por que não mostrar aos indivíduos a sua responsabilidade? Batalhar por mudanças na ordem política e na ordem social requer estruturação, requer reorganização e conscientização desde a base, e não apenas ficar sentados nas nossas cadeiras, seguras e confortáveis, pensando em quem colocar a culpa. O cidadão também é responsável pelo medo que o encarcera. Quando nós passamos por um cidadão, sentado na calçada, suplicando algumas moedas, e viramos a cara, temos mesmo o direito de reclamar quando esse mesmo cidadão passa a tentar tomar as moedas pela força?
    As palavras de Roseno são verdadeiras e, diga-se, esclarecedoras, mas quando ele foi perguntado "omo é possível, diante desse cenário, desmilitarizar a polícia e a política?", o que ele fez foi dar uma resposta óbvia, teórica, e meramente potencial, mas não respondeu, de fato, ao "como" que encabeçava a pergunta. É isso o que todos nós temos feito.

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  5. É inegável que quem sofre o ônus da busca pela segurança e pela ordem em nosso país são os pobres, que diariamente são vítimas de violência, que em grande parte é efetuada pela polícia militar, tal fato já se naturalizou e se legitimou através de uma mídia que utiliza os meios de comunicação para manipular e firmar discursos das classes que detém o poder. Quando se analisa esse quadro é perceptível o racismo de Estado que utiliza diferentes discursos não só para justificar as suas ações de violência contra as classes menos favorecidas, como também para tentar frear focos de resistência impondo o medo.

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  6. Raphael Cordeiro
    Eu penso quando vejo a frase: "Os movimentos sociais responsabilizam as forças policiais pela violência contra a população, principalmente de baixa renda e negra". E me pergunto quem é que forma também a força policial? É a população de baixa renda e mestiça (de tom de pele mais escuro) que compõe a maioria força policial, então como em toda guerra (sim por que tanto na cabeça dos soldados policiais e dos soldados do crime eles estão em guerra) é a batalha dos pobres contras os pobres para que ricos fiquem mais ricos.
    Reflitam em como pensam os policias quanto a diferença em quem esta de que lado da arma, quando é um policial que ha esta empunhando na direção do criminoso, ele tem algumas opções entre dar voz de prisão (que a maioria dos suspeitos não para quando ha houve) e usar a força progressivamente (tentar imobilizar o suspeito através da força física, se não de certo usar armamento não letal)e só depois atirar (o que mais tarde gera uma papelada no qual ele tem que justificar o seu ato) não podendo ser no caso do suspeito não estar armado ou estiver de costas ou em fuga e ele só pode atirar para se proteger ou proteger outra pessoa. Agora e quando é o criminoso que esta empunhando a arma na direção do policial, ele tem todo este código para poder puxar o gatilho e então policial pensa no que ele deveria fazer quando esta nesta situação e o que o criminoso faria na mesma? Reflitam também no grau de periculosidade em que ele trabalha a em quanto ele recebe no final do mês por este trabalho (e quando se aposentar esta remuneração cai para metade ou menos da metade), pensem no fato que se ele matar um criminoso toda a comunidade que luta pelos direitos humanos vai "cair matando em cima dele" e ele pensa e se fosse ele que tivesse morrido no comprimento do dever, ou como aconteceu muito no sudeste em que a maioria dos policiais que foram assassinados estava em folga ou já eram aposentados, os direitos humanos agiriam da mesma forma? Por exemplo, no caso de criminosos que estão armados e rendem uma pessoa para refém o policial esta amparado para atirar no criminoso, depois é claro de ocorrido tentativa de dialogo com ele, pois na situação seguem-se estas prioridades: primeiro preservar a vida da vítima, dos agentes aplicadores da lei em segundo, e, em ultimo lugar a do agressor, pois ou ele pode ferir a vítima ou se voltar contra os policiais. Mas hoje é muito difícil os policias atirarem, pois logo os diretos humanos se voltam contra ele (e também há o processo na própria policia quando ele mata alguém), mas o policial pensa e se o criminoso mata o refém? O “pessoal” dos direitos humanos vai processa-los por isso?
    E isso aliado às más condições de trabalhos, e de treinamento por parte do Estado ocasiona (como dito por um policial) entre os policiais de que os diretos humanos são os “diretos dos manos”, então eu não vejo a demonização da policia, o que a maioria da policia e da população faz com os criminosos, seja um meio correto de ver a situação, que está um mar de excrementos. Deveria assim como se vê o lado social da criminalidade; suas relação com a falta de estrutura das politicas publicas (ou sua completa ausência) como há educação, saneamento básico, segurança publica e iniciativa de inserção no mercado de emprego para citar algumas; deveria tentar se olhar o lado social dos policiais, para que possamos ser aliados e não inimigos, como pensam serem (provavelmente) a maioria dos policias e também grande parte da aqueles que lutam par que sejam respeitados os direitos humanos.

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  8. Por muito tempo, e até perdura o pensamento de que a solução para todos os problemas é a violência, quando não há mais nada que possa ser feito, ou que não queria ser feito, punir, agredir, violentar é a solução. Porém é notório que violência somente gera violência, sentimentos revoltosos, e brutalidade, e não é assim que ser pretende viver em pleno século XXI, hoje existem tantos estudos que apontam pra ineficácia da violência e mesmo assim as políticas baseiam-se nesta medida, resta saber o porquê. O Estado continua servindo-se da violência deflagrada pela polícia para amedrontar e "controlar" a população, no entanto vê-se que isso não diminui o índice de criminalidade. É necessário educar para não prender. Não é escondendo os criminoso que se vai conseguir uma melhoria na população, não há como "limpar" esta consequência, não desta maneira.

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  9. Acredito bastante merecedora de atenção a fala de Renato Roseno no seguinte ponto: “(...) na verdade você não ressocializa ninguém pelo dispositivo penal. Você apenas seleciona e estigmatiza”. Vejo que o Direito Penal e os seus mecanismos de intervenção na sociedade tem eficácia limitada, operando até certo ponto. Sem sombra de dúvidas (e como foi dito pelo advogado), a seleção penal se dá mediante critérios racistas e que visam encobrir problemas mais graves, como a ausência de políticas sociais efetivas e eficazes, que deveriam ser fornecidas pelo Estado. Entendo que o encarceramento e a utilização de outros mecanismos punitivos não consegue solucionar problema algum, apenas retira das vistas da sociedade aquilo (e aqueles) que ninguém quer ver.

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  10. A ideia de que esse indivíduo ou esse menor delinquente fica melhor para a sociedade se for preso, não leva em questão as condições, ou melhor, falta de condições básicas, como segurança, saúde e educação que por muitas vezes lhe foram negadas e nem ainda que os sistemas penitenciários tem como objeto não (somente) punir retirando sua liberdade, mas preparar o indivíduo para sua reinserção na sociedade. Mas como esse indivíduo será reinserido na sociedade se as penitenciárias são por muitas vezes o auge da violação dos direitos humanos, onde os presos são tratados de forma cruel e desumana. A mesma sociedade que o julgou será o alvo de sua vingança quando este retornar. O medo aumenta, a violência não diminui e o uso de arma de fogo que deveria ser exceção pela força policial se torna regra.

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  11. A mídia a serviço das elites, passando informações equivocadas a população, gerando insegurança na mesma. Com isso, possibilitando que o governo implante medidas punitivas a população pobre e sem quase resistência, enriquecendo ainda mais pessoas que aproveitam-se do caos instalado, oferecendo "soluções mágicas" para se ter a "sensação de segurança".

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  12. Um dos discursos que entram mais em voga através da mídia é a questão da impunidade, o velho discurso que o nosso Estado não pune o suficiente e com a devida eficiência. Como um país que teve o 3º maior crescimento de população carcerária no mundo, e que tem previsões de ter em alguns a 3ª maior população carcerária mundial em números absolutos pode se dizer um país onde a impunidade vigora?
    Muitos são os punidos, e os punidos são pessoas certas: pobres e negros. Fechar os olhos para essa realidade, e sempre defender a prisão como a solução para todos os problemas sociais é ingenuidade, e no mínimo falta de informação. Enquanto nós defendermos essa forma de ação, vamos estar defendendo a persistência e o agravamento de todos os nossos principais problemas sociais.
    A polícia, a prisão e a violência não são caminhos possíveis de uma sociedade democrática, e que defenda realmente o valor da liberdade.

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