quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Não às drogas da obediência!

Publicado por: medicalização.org.br

Maria Ap. Affonso Moysés
Campanha: ação chama atenção para o excesso de diagnósticos de hiperatividade e busca combater o uso indiscriminado de medicamentos em crianças com dificuldades de aprendizagem.

Karina Fusco – Especial para a Metrópole
especial.metropole@rac.com.br

O Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e o Conselho Federal de Psicologia lançaram, em meados de julho, a campanha Não à Medicalização da Vida, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Os objetivos são reacender a discussão sobre o excesso de diagnósticos de hiperatividade em crianças e adolescentes e combater o uso indiscriminado de remédios.
Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o Brasil é o segundo maior consumidor de medicamentos para tratamento de distúrbios relacionados ao comportamento e à aprendizagem. “Estamos atrás apenas dos Estados Unidos”, informa Maria Aparecida Affonso Moysés, professora do Departamento de Pediatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ela, que também é membro fundadora do fórum que organiza a campanha e estuda o assunto desde a década de 1970, fala à Metrópole sobre o possível exagero no diagnóstico das alterações comportamentais, o tratamento com substâncias com ação semelhante à de anfetaminas e da cocaína e a necessidade de pais e professores ouvirem e ajudarem a garotada.
Metrópole – O que é medicalização?
Maria Aparecida Affonso Moysés – É um processo que transforma artificialmente os problemas coletivos, sejam eles políticos, econômicos, culturais ou educacionais, em problemas individuais. Todas as diferenças, inclusive no modo de aprender e de se comportar, são transformadas em doenças e passam a ser tratadas, preferencialmente, com drogas psicoativas. Esse é um fenômeno cada vez mais frequente, pois vivemos a “era dos transtornos”, em que tudo que é inerente ao fato de estarmos vivos e vivermos em uma sociedade desigual é apresentado como transtorno eurológico ou neuropsiquiátrico nosso.
O fato de o Brasil ser um dos maiores consumidores de medicamentos para tratamento de distúrbios de aprendizagem pode indicar uma banalização do diagnóstico?
Crianças e adolescentes são os principais alvos da medicalização porque são mais questionadores, briguentos e agitados, os mais liberados das amarras sociais. Com isso, faz-se o diagnóstico exageradamente. Em 2000, foram vendidas 70 mil caixas de medicamentos para tratar distúrbios de aprendizagem no Brasil; em 2010, 2 milhões. Além da quantidade, é assustadora a velocidade do crescimento.
A senhora acredita que há exagero?
Sem dúvida. Porém, não estou dizendo que não há pessoas com comportamentos muito diferentes dos padrões socialmente estabelecidos ou com maiores dificuldades no aprendizado. O que nós questionamos é o enquadramento de todas elas nos diagnósticos de dislexia ou Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) como uma doença neurológica, o que até hoje não tem comprovação científica. No campo da medicina, não é aceita a existência de uma doença neurológica que só altere o comportamento e/ou a aprendizagem.
Mas, e os exames que comprovam os diagnósticos?
Apresentar alterações nos exames e no comportamento não quer dizer que a pessoa tenha uma doença neurológica. O exame de neuroimagem, pretensamente usado para diagnosticar dislexia, por exemplo, apenas reflete se certas áreas cerebrais foram ativadas. Se a pessoa receber um texto em alemão e não tiver conhecimento do idioma, também não conseguirá ler e o resultado será igual ao de um analfabeto. Ou seja, o exame mostra que a pessoa não está lendo, mas não aponta o motivo. Existe um questionamento internacional em relação a isso.
O que a senhora pensa do questionário Snap-IV, usado para avaliar a atenção e a hiperatividade de crianças?
Ele contém 18 perguntas vagas, imprecisas, malformuladas e que se referem apenas ao comportamento. Além disso, basta que a criança aja de maneira distinta em dois contextos diferentes para ocorrer o diagnóstico. Isso é muito estranho em uma pretensa doença neurológica e vai contra a lógica da medicina, da biologia e da vida. Se a criança presta atenção no videogame mas não na escola, não é porque ela não sabe prestar atenção. Da mesma forma, se obedece a mãe e não o pai, não significa que não sabe obedecer. Por isso, em vez de se basear em questões padronizadas, a saída é entender o motivo pelo qual a criança não presta atenção e disponibilizar a ela formas mais atrativas de aprendizado.
Quais os principais medicamentos receitados em caso de distúrbio de aprendizagem? Eles oferecem riscos?
O metilfenidato, que tem os nomes comerciais de Concerta e Ritalina, e o dimesilato de lisdexanfetamina, chamado comercialmente de Venvanse, são usados como amplificadores cognitivos para tratar o TDAH. Não são seguros porque podem provocar reações adversas, como sonolência ou insônia, alucinação, piora da atenção e da cognição e até o efeito Zumbi Like, que faz com que a pessoa pareça um zumbi, contida em si mesma. Para o sistema cardiovascular, os efeitos incluem arritmia, hipertensão e parada cardíaca. Também há um estudo da Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regulamenta alimentos e medicamentos) que aponta que o risco de morte súbita é até sete vezes maior em crianças que tomam essas medicações. Além disso, as substâncias afetam o sistema endócrino, em especial os hormônios de crescimento e os sexuais.
Diante desses riscos, como a senhora avalia a importância da campanha Não à Medicalização da Vida?
Existe a necessidade de divulgar o assunto e alertar as pessoas, porque alguém próximo pode estar sofrendo. Nesse primeiro momento, nosso foco é na educação.
Queremos transmitir a mensagem de que crianças e jovens aprendem em tempos diferentes e de diversas formas – o que funciona para um pode não funcionar para outro – e que, em vez de receitar remédios, é possível ajudá-los com trabalho pedagógico. Aliás, uma criança que não presta atenção em algo é porque está voltada a outra coisa. Então, não se trata de nomeála de desatenta, mas de descobrir em que está atenta.

Na sua opinião, quais são as alterações necessárias na escola e na família para mudar o cenário?
Pais e professores precisam se reapropriar da sabedoria de olhar e escutar seus filhos e alunos. Precisam buscar entender os motivos do comportamento fora de padrão, partindo do princípio de que ele é o indício de que há um problema. O comportamento virou doença, mas, na verdade, é apenas o indicador da existência de conflitos ou sofrimentos nessas crianças e jovens, que estão pedindo socorro. Também é necessário ter claro que as drogas psicoativas usadas no tratamento silenciam as crianças e resolvem o problema de comportamento, mas não solucionam o que leva a ele. Também não resolvem os crônicos problemas da escola brasileira, criados e mantidos por políticas educacionais geradoras de fracasso.

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